terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Todas as importâncias da personagem

A metáfora das bonequinhas russas servem tanto para explicar a temática trabalhada por Sidney, das mulheres e dilemas próprios delas, como também para ilustrar a forma com que o autor constrói as narrativas.


por Tatiana Faria
Uma vez conversando com um conhecido, versávamos sobre a motivação e a paixão pela literatura e, tentávamos um convencer o outro, dos sentidos, sentimentos e motivações que a literatura é capaz de causar. Pode ser devido aos meus vinte e uno anos ou ás constantes referências que as outras artes exercem em mim, mas o que eu gosto mesmo na literatura é quando ela faz com que o meu coração bata mais rápido e me leve a perguntas, na maioria das vezes, difíceis (ou impossíveis) de responder.

Com o passar do tempo, e me esforçando um pouco para adquirir algum repertório que fosse, me deslumbrei com muitas palpitações no coração, pude perceber, então, que as paixões eram consequentemente motivadas pelo gosto e que este tinha a ver com o habito, referências temáticas e estilísticas anteriores e com alguma influência de um repertório pessoal. Como tenho como tendência seguir e viver as paixões, resolvi aceitá-las e vivê-las em cada folheada de papel que por algum motivo me motivasse.

Assumo que prefiro os que me inspiram devido às inovações estilísticas, temáticas e principalmente aqueles que mal consigo explicar, quiçá racionalizar. E que mesmo tendo acesso e razoável compreensão das teorias literárias, estéticas e filosóficas, e ainda, alguma pitada de criatividade, continuo acreditando que nem tudo é capaz de explicação, e mesmo que um dia haja explicação para tudo, continuarei acreditando na superação da literatura e no surgimento de narrativas que continuem provando que nem tudo se explica, pois pretendo continuar vivendo as paixões.

Matriuska me ganhou logo de começo. A metáfora das bonequinhas russas servem tanto para explicar a temática trabalhada por Sidney, das mulheres e dilemas próprios delas, como também para ilustrar a forma com que o autor constrói as narrativas. É um livro de contos que facilmente pode ser estudado ou lido como uma narrativa romanesca, já que existe uma unidade entre os contos (ou capítulos) no que diz respeito ao tema, as personagens e a forma com que o autor molda todo o enredo. Como nas bonequinhas, que variam apenas pelo tamanho, mas que conservam na sua essência a forma, o livro trabalha concomitantemente com a variação do enredo (representando a individualidade e autonomia de cada conto) e com a repetição do tema (representando a coletividade existente entre eles).

Sidney retrata as peculiaridades femininas com singeleza e intensidade na mesma medida. Singelas, pois constrói o enredo através da descrição de ações e não procura explicar nem reduzir as experiências das personagens a possíveis construções morais ou apenas a temas centrais, abrangendo a experiência da leitura, pois ao não explicá-las o universo interpretativo se expande, e consequentemente se enriquece. Dessa maneira, a intensidade das suas ações se intensifica, muito por consequência de um apelo formal utilizado pelo autor, que fragmenta as vivências e descreve apenas o clímax de cada uma delas, tornando-as intensas e arrebatadoras na forma e na experiência obtida através delas.

A construção narrativa do livro é baseada, sobretudo, na construção das ações das personagens. Em muitos aspectos, a técnica empregada pelo autor se assemelha às construções utilizadas no cinema, em que há um desenvolvimento da história através das ações das personagens. No livro, as ações e objetos constroem simbolicamente as personagens e as questões abordadas por ela no conto, como a bolsa do conto "Matriuska" que carrega todas as importâncias da personagem. A apresentação da personagem através dos objetos quantifica as suas angústias e singularidades, além de produzir uma valorização do tema e da adjetivação utilizada no texto. Como, por exemplo, no trecho: “A solidão de um brinco que largara no mundo o seu par”. O autor usa de dois recursos formais para retratar a solidão da personagem. A metáfora dos brincos sem par e a adjetivação dessa experiência, através da utilização do termo “solidão” no começo da frase.

Em alguns momentos da minha leitura, me conflitava com a indecisão de continuá-la ou de deixá-la momentaneamente. Tratam-se de narrativas muito intensas tanto na forma quanto no conteúdo. Um pouquinho dela por dia já é suficiente para um deslumbramento completo em relação aos desdobramentos de questões formais relacionadas à literatura atual, que muitos julgam erroneamente não existir mais transgressão formal inovadora, e que este se encarrega de apresentar com completa maestria. Porém é necessário ressaltar que essa intensificação da forma e da experiência está relacionada à fragmentação das histórias a situações em sua maioria muito isoladas, como podemos observar se conflitarmos as relações entre os contos "Matriuska" e "Googlemap", em que mesmo ligadas através da mesma personagem e transformando as duas histórias em uma parte integrante da outra, mais uma vez trabalhando formalmente o conceito que dá nome ao livro (Matriuska), as narrativas continuam espaçadas e isoladas em experiências amplamente individualizadas da mesma personagem. E esse vai-e-vem entre a relação e o isolamento entre os contos, oferece a nós, leitores, a estranha sensação de expansão das experiências e logo em seguida de síntese delas.

A tendência a fragmentação das experiências artísticas em quase blocos, muito intensos, mas desconexos de um todo, tem sido amplamente explorado em vários campos das artes, como podemos observar ao conflitarmos a literatura atual com o tratado do Teatro Pós- dramático de Lhemann que diz que um dos pilares do teatro atual está na valorização da autonomia da cena e na recusa a qualquer tipo de “textocentrismo”. Se optarmos pela comparação entre as questões estéticas trabalhadas na atualidade entre os diversos segmentos artísticos, observaremos primeiro que os limites entre elas tornaram-se cada vez mais tênues e segundo que elas seguem tendências muito próximas em relação às inovações formais.

Os padrões regulares de classificação da literatura já não dão conta da atual ao romperem com os aspectos formais. Em relação ao gênero romanesco, não apresentam mais as unidades básicas da narrativa, o começo, o meio e o fim, e em relação a sua categorização como conto, possuem estruturas muito regulares no que diz respeito á construção formal e temática, esbarrando nos padrões autárquicos referendados nas teorias formais em relação aos aspectos do conto (em especial, as propostas por Júlio Cortázar). A hibridização do texto certamente aparece como a principal inovação formal e, consequentemente, tendência da cena literária atual. A dificuldade de classificação nos mostra a defasagem da teoria literária em relação aos aspectos contemporâneos, é certo que é necessário tempo para que alguns movimentos sejam reconhecidos e estudados, porém esse tempo, supostamente necessário, implica na defasagem entre obra, contexto histórico e construção crítica. Dessa maneira, parece que tudo na arte atual torna-se vanguarda, pois há um distanciamento enorme entre obra e teoria no que diz respeito aos aspectos temporais e, dessa maneira, muitas vezes a arte é acusada de não condizer com o seu tempo, enquanto o movimento deveria ser oposto, pois é crítica que não tem dado conta dele.

Ao ler o livro de contos de Sidney, senti (e ainda sinto) muita dificuldade em desvendar algumas construções formais empregadas por ele. Certamente esta dificuldade resulta concomitantemente da inovação estilística abordada por ele e da minha limitada percepção em relação aos padrões atuais. Pode ser também que daqui a 20 anos leia Matriuska e perceba que o meu equívoco não estava na incompreensão no texto, mas sim nele próprio e que não se trata de algo tão brilhante e inovador assim. Porém, ao me sentir motivada e viva durante a leitura, devo apostar em sua maestria hoje e daqui a 20 anos, pois são as palpitações que me tornam viva e a busca pelas explicações delas que me torna capaz de vivê-las.

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