terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A linguagem de microscópio no telescópio de Matriuska

Entrevista de Sidney Rocha para o Verbo 21
comenta processos de criação e projetos para o futuro.


GUSTAVO RIOS – Vejo as resenhas que falam de Matriuska, e todas – ao menos as que pude ler – possuem elementos comuns na tentativa de “explicar” o livro. Ou seja, todos os resenhistas e/ou críticos citam dois temas como principais eixos: o universo feminino e a morte. Você concorda com isso ou faltou acrescentar algo essencial?

SIDNEY ROCHA - Acho o reino da resenha e da crítica um universo em separado. Sempre achei a resenha uma peça literária deliciosa. Por exemplo, quando escrevo uma resenha, preciso que ela prescinda de tudo, inclusive do livro resenhado. Acho que é essa a intenção de um bom resenhador ou bom crítico. As boas resenhas que li sobre a Matriuska têm isso, de se sustentarem sem a existência do livro ou do autor do livro. São diferentes dos simples comentários pela internet, por exemplo, que tem essa "explosão", e que conduz outros a lerem o livro. Uma resenha não é um comercial nem um manifesto. Não pode ser peça de divulgação ou manifestação do fígado de quem a escreve. A resenha é como um enigma, é uma marca. Um evangelho sem deus algum. Gosto de pensar nisso assim.

Quanto aos eixos a que você se refere na Matriuska, não os considero assim, como demarcadores, limites, brechas, feixes. Muita gente falou, sim, dessas duas pulsações, a morte e a mulher, e se trata disso também. Mas o livro é um romancezinho disfarçado de contos, e fala especialmente sobre relações humanas, dessas para as quais as gentes têm perdido a sensibilidade para redescobrir sem o uso de equipamento apropriado. Nesse caso, os contos de Matriuska são o telescópio. E a linguagem é o microscópio.

G.R. – Alguns personagens me parecerem bastante reais. É como se eles tivessem realmente existido; como se você os tivesse conhecido de fato, nas situações descritas no livro. Outra coisa que percebi foi uma espécie de repetição, como se tal personagem voltasse em outra página, numa situação completamente diferente. Mesmo sendo um puta clichê, fica a pergunta: quanto da sua realidade serviu de inspiração na obra?

S.R. - Não me preocupo mesmo com a realidade, camarada. Faço uma literatura de possibilidades e se algo difere entre o meu trabalho e o sonho de uma criança ou a imaginação de um drogado ou a experiência de um homem comum, a diferença está somente na forma. A forma é tudo. Este falso romance vestido na pele dos contos está costurado assim, de forma que os personagens possam invadir a qualquer momento a "possibilidade" do outro personagem num outro conto. Esta tensão marca, principalmente, quatro das dezoito uno-narrativas de Matriuska. Quem o ler, verá a ligatura. E como não me utilizo de recursos ilusionistas e de nenhum barroquismo no meu texto, isso fica tão claro que o leitor, acreditando ter visto todos os nós desatados, acredita estar conduzindo algum tipo de realidade. Ou estar numa. Uma ilusão de compreensão, por assim dizer, esta é a dimensão do leitor. O autor só está a um (de)grau acima.

G.R. – Para mim todos os contos foram escritos como se fossem urgentes. Não pelo tamanho, nem pela falta de detalhes que sirvam de lastro para que o leitor viaje e entenda seu universo. Mas a forma como os textos surgem parece mostrar que você tinha pressa em dizer tudo aquilo. Em quanto tempo você concluiu a obra? E foi um processo pensado o tempo todo, ou a inspiração definiu o ritmo?

S.R. - Costumo dizer que, em literatura, tudo é pensado. O sonho mesmo, no ponto de vista da construção onírica, já é um produto elaborado. Nada está simplesmente posto. Quem imagina diferente, que largue o ofício imediatamente. Melhor: nem comece. Detesto quando se referem ao ato de escrever como inspiração ou mediunidade ou zen-budismo ultramoderno. Detesto romantismos. Um escritor não pode ser ingênuo a este ponto porque não há leitor ingênuo de jeito nenhum. Eu mesmo, como leitor, não seguiria uma leitura onde não visse um plano, uma intenção de quem escreve. Ler algo assim é como essa tolice de seguir pessoas no twitter: Uma perda de tempo.
Agora, quanto ao que você se referiu, o plano não está no detalhe, na cena, no cenário. Está no personagem. Mas hoje que estou bonzinho vou lhe dizer o truque completo. Não está sequer no personagem, está na situação onde se coloca o personagem.
E aí onde entra a forma, não o formalismo da regra. A linguagem a serviço da narrativa, não da retórica e nem especialmente à norma gramatical por excelência. Lógico que não se trata de um desbunde, de um desmando, de um desmonte, de um desmantelo. Trata-se de firmeza, não de experimentações.
Já o livro, o escrevi em nove meses. Isto mesmo: o tempo de uma gestação (não lembro em quanto tempo as vacas são paridas). Foi outra coincidência. Na verdade, ele foi feito enquanto trabalhava em algo muito pesado, que era escrever roteiros para programas de tv, e aquilo, eu sentia, podia acabar com os meus ânimos de escritor. Na época, estava morando em hotéis, talvez venha disso a sua impressão de urgência, que mais lhe digo ser transitoriedade, trânsito. Então abri uma pasta no notebook, a nomeei de "ficar vivo", e fui escrevendo os contos e jogando lá.

G.R. - Sendo um processo pensado então, pergunto: qual seria o ponto de partida (se é que dá para responder a pergunta de forma simples) para os contos “egg” e “nuvem”? Parece uma pergunta cretina. E pode até ser mesmo. Mas, para mim, são dois exemplos onde o leitor deve se perguntar: “Onde o Sidney tira ideias desse tipo?”

S.R. – Gustavo, você que escreve sabe que as ideias vêm de lugar nenhum e de todos ao mesmo tempo. Nós que escrevemos também sabemos que o resultado do que escrevemos é a soma do tempo de observação, maturação, ócio e muito cálculo também. Portanto, é injusto imaginar que seja aquele dado momento que forneceu o “insight” pra determinado conto ou cena do romance. Mas é divertido lembrar elementos do processo criativo que, afinal, só servem mesmo para o escritor. Para que você tenha uma ideia, este conto que você mencionou, “nuvem”, tinha quinze páginas na sua versão original. Os personagens, a família Brian, eram lavradores, e tudo se passava na Segunda Guerra, na Europa. Tinha uma epígrafe do Antigo Testamento, sobre as pragas do Egito, era quase uma novela. Quem pudesse ler as duas versões entenderia um pouco do processo. Finalmente, no livro, o conto não alcança duas páginas. Fui guindado a escrever o conto desescrevendo aquela novelinha (porque era este o meu objetivo, escrever os contos, e jogar fora qualquer narrativa que tentasse me impedir no caminho) e, mantive o narrador, que parece sobrevoar, como se emprestasse ao conto uma atmosfera sombria, em off, uma fumaça. Depois é que tudo se transformou no essencial do conto. Ocorre muito isto comigo (Atualmente estou debastando um conto sobre um anão e nisso já trabalho há quatro meses, praticamente todos os dias).
Já o conto “egg” acometeu-me num hotel em São Paulo. Egg é um tipo de poltrona, desenhada por importante designer, e dei este nome a minha personagem. Tudo tem a ver com o consumo, em Matriuska. Mas tudo gratuitamente, sem querer transformar nada em sociologismos ou psicologismos ou “egg-ajamentos”, saca?

G.R. – O livro também parece que agradou a muita gente e a imprensa em geral.

S.R. - Foi. As pessoas podem ver algumas das críticas em um blog [http://matriuskando.blogspot.com] que um leitor está alimentando. O Estadão disse que o Matriuska era uma das grandes surpresas dos últimos tempos. O Marcelino [Freire] garantiu que era um dos melhores livros do ano etc., etc., mas importante é que as pessoas leiam, e botem suas conclusões nisso.

G.R. – Um escritor, não tendo domínio das outras etapas editoriais que ocorrem no processo de publicação, consegue, no máximo, imaginar o resultado final da obra. Falo da divulgação, do formato, do livro pronto. Você, sendo também um editor, colaborou na parte gráfica da obra. Além disso, outras questões sobre Matriuska (tiragens, divulgação etc.) tiveram sua participação?

S.R. - Quis me ausentar ao máximo de tudo neste livro. Venho caminhando nesse sentido, em quase tudo na vida. O ofício de editor lhe deixa sempre antenado com os processos, mas o fato de ter um editor como o Samuel Leon, da Iluminuras, deixa qualquer autor não somente à vontade, mas também muito bem "posto no seu devido lugar". Portanto, tudo segue bem, profissionalmente. Ainda não pude me livrar da parte hardcore, que é a coisa de lançamentos, aparições, o teatro dos lançamentos, mas confesso que venho encontrando prazer nisso também, como um ator, além de autor.

G.R. – Conte um pouco sobre o filme que surgiu do livro.

S.R. - Há muito que venho aproximando a minha produção ao cinema. Talvez porque a minha experiência de roteirista às vezes me leve a isto, muito embora a figura do roteirista às vezes seja tão distante da figura do escritor que a maioria das pessoas não acreditaria, vendo na prática. Há muito bons roteiristas que são péssimos escritores, e vice-versa. Além disso, não há nada pior para o cinema que a literatura e nada pior para a literatura que o cinema. Claro que isso é uma provocação. Mas esse debate a gente trava depois.

No caso do curta "Matriuska", Pablo Polo é o diretor, Isabela Cribari é a produtora executiva, e ele foi filmado todo no Recife. O Pablo escreveu lá abaixo dos créditos: "A Sidney Rocha, esse incendiário", porque eu o desafiei a fazer um filme sem romantismos também, sem esperar que chova grana, sem esperar que pare de chover chuva mesmo dos céus, um filme onde tudo fosse como escrever, um fast-movie, mas usando especialmente o fantástico talento que Pablo tem para o set, para a cena, para a direção de atores. E ele aceitou. E fez. Aquilo mexeu com a equipe toda, técnicos, atores, produtores, patrocinadores. Isto foi muito legal. Isto a literatura perde para o cinema. Esse prazer coletivo. O filme está percorrendo festivais por aí. Mais não sei. Mais que isso pergunte pro Pablo.

G.R.- Tenho a impressão que seu livro, surgido no final de uma década em que, aparentemente, a literatura brasileira ganhou em ruído, mas perdeu em essência. O próprio Marcelino Freire falou disso, se não me engano. Parece-me que Matriuska começa uma nova fase. Para você sua obra poderá influenciar novos escritores?

S.R. - Escrevo para leitores. Não me preocupo com outros escritores. Quero influenciar o modo como as pessoas leem.

G.R. - Quais seus próximos projetos?

S.R. - Sei que o meu romance Sofia tem chances de ser publicado para a rede de bibliotecas e escolas pelo Brasil afora, ainda em 2010. (Debastei o texto e o livro ganhou em clareza. Faço isso constantemente ao meu texto, mudo o que quero, quando quero, se não for coisa de contrato).
Aceitei o convite de participar da coletânea do Nelson Oliveira, para o Boitempo, sobre a literatura que vem se produzindo no Brasil, e que sai também agora.
Estou escrevendo novelas, e terminando um romance, que devo à editora desde o ano passado. Mas vou terminá-lo. Viajo agora para terminar. Não consigo viver sem alguma viagem, porque cada chegada em algum lugar sempre considero um começo, e isto é animador. Ah, mas antes de tudo, estou tentando me livrar daquele anão que te falei. Depois dele, o dilúvio.



Mais sobre o livro:

http://www.matriuska.com.br/

http://sequicosacro.blogspot.com/

Programa Espaço Aberto - Literatura - Globonews

Um comentário:

  1. Li o livro, e a imagem daquela mulher revirando a bolsa ficou dentro de mim muito tempo, tão punjente e verdadeira.
    Sidey é bom prá falar de dores. Faz doer na gente. E isso é um talento raro.
    Agora, quero mais dele.
    Parabéns pela iniciativa do blog.
    Laura

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