domingo, 20 de setembro de 2009

Tende piedade das matriuskas

ENTREVISTA » SIDNEY ROCHA

por Marcelo Pereira
marcelop@jc.com.br
para o Jornal do Commercio

Com os 11.068 caracteres que formam as 1.929 palavras desta entrevista ao JC, o escritor cearense radicado no Recife Sidney Rocha faria alguns contos de Matriuska (editora Iluminuras, 96 páginas, R$ 35), que lança amanhã, às 19 horas, na Livraria Cultura do Paço Alfândega. Se é explicativo na entrevista, no conjunto de 18 textos que compõem a coletânea, prefere realizar uma operação de subtração a fórceps. As narrativas dão vozes à mulher. São atemporais, mas não etéreas. A dor, o sofrimento, a violência sexual, os impasses na busca de viver a felicidade possível e o prazer marcam o corpo e a alma de suas matriuskas: licinha, ana esther, zulmira, jane, guadalupe, além de outras, anônimas, identificadas apenas em sua condição social ou familiar. Suas histórias vão se revelando e se desdobrando, umas nas outras, como nas bonecas russas que dão nome ao livro.

JC – Por que as mulheres são tão desesperançadas ou sofrem tanto na pele?

SIDNEY ROCHA – “Deixai aqui toda esperança, (vós que sais)”. A inscrição poderia estar escrita na placenta de cada mulher. Porque é da humanidade que estamos falando, sempre. O “recorte” de Matriuska é só parte dessa história de amor. Porque toda história finda por ser uma história de amor. Eros, Psiqué e Tânatos o tempo inteiro. O sofrimento advém disso: todos querem prazer, poucos podem compreender o quanto, e todos são vencidos. Estas são as peles da matriuska.

JC – As mulheres são, quase sempre, vítimas. Por que elas têm receio de tomar as rédeas da ação?

SIDNEY ROCHA – Pelo contrário: as mulheres têm sempre as rédeas das situações. O cordão umbilical já é uma rédea, um cabresto de carne. Uma das minhas personagens toma a direção logo cedo, ela não sabe pra que lado é a praia, por exemplo, mas sabe por onde começar. A outra, no conto Googlemap, não conhece o mundo, mas inventa cada cidade do mundo, de carona no que lhe contam. Daí inventa também o dono da história. Um mundo todo feito de oitiva. Matriuska é principalmente a anti-vitimização feminina. Só os homens se iludem de que elas são vítimas, elas sempre sabem que são os algozes, ou mais do que esse simples maniqueísmo de carrascos e vítimas. Carrascos de si mesmo, como disse Baudelaire.

JC – Podem estar nas rédeas, mas não conseguem fugir da fatalidade ou encontrar a felicidade, não é?

SIDNEY ROCHA – Ninguém mesmo pode. Por isso o desapego do romantismo.

JC – Com Matriuska você passa a integrar um time de escritores pernambucanos – ou radicados em Pernambuco – que são cruéis com os personagens – Marcelino Freire e Raimundo Carrero, principalmente, e Ronaldo Correia de Brito. A realidade é tão aterradora assim?

SIDNEY ROCHA – A realidade é que não me preocupo com a realidade. No mundo tão virtual quanto o nosso é impressionante como as pessoas confundem realidade com pesadelo. Como disse Eliot, a humanidade não suporta tanta realidade. Escrevo mais sobre os pesadelos (a palavra em inglês, nightmare, por coincidência com o que estamos conversando, pode ser traduzida por “égua da noite”, portanto, mais uma vez, a fêmea e as rédeas). O ser humano é que é aterrador, o desespero humano é que é fascinante.

JC – Sua escrita reflete a banalização da violência dos dias de hoje? Não há mais espaço para o romantismo?

SIDNEY ROCHA – Acho que sim, que reflete a esterilização que vivemos para a violência. Mas a minha literatura não se quer a serviço de denunciar coisa alguma. Não posso acreditar que a minha literatura possa funcionar melhor que a imprensa para isso. Ou que possa também contribuir mais negativamente do que a imprensa para isso. Isso seria um romantismo. Para este tipo de romantismo, não pode haver espaço mesmo.

JC – Seus títulos relacionam-se com o universo de consumo feminino, mas há pouco de vaidade em suas mulheres. Essa é a ironia de Matriuska? Os produtos ou nomes se referem às vezes a seu oposto ou são sua negação?

SIDNEY ROCHA – Sem dúvida que sim. Dia desses eu vi numa pesquisa quantos milhões de dólares circulam no mundo dos cosméticos. Fiquei pensando naquilo. Na promessa da beleza, do prazer, e, no dia seguinte, a mulher no espelho, renovando a esperança desta mesma beleza e prazer. Interessou-me a ingenuidade em tudo aquilo. Então os meus contos mostram que tipo de proteção é esta. Quem protege quem, afinal, do sol? Quem absorve quem, do mundo? Quem adoça os lábios de quem, afinal? Na verdade, é a mulher dando o troco à publicidade, ao consumo, desde a primeira boneca que lhe deram até o último chip de celular que comprou.

JC – As histórias não tem época ou espaço específico. Mesmo quando há citação de determinado lugar é como referência geográfica. Seus personagens estão sempre em trânsito?

SIDNEY ROCHA – O livro foi escrito como num grande traveling. Os closes o leitor vai descobrindo. Por isso parece cinema, com planos que se abrem muito e fecham, por exemplo, numa mulher tirando objetos de uma bolsa. Assim, no livro, tudo está mesmo “no” trânsito, no transe, na transa.

JC – Nota-se a referência à Bíblia na escolha do nome de algumas personagens. Quais foram as suas principais fontes para as histórias narradas?

SIDNEY ROCHA – Estas histórias têm a força que têm não porque aconteceram em algum tempo e lugar, mitologicamente ou na realidade. Mas simplesmente porque estão acontecendo agora, em muitos lares, em muitas estradas por aí. Então as minhas fontes são sempre as possibilidades. Mas há um conto, por exemplo, que me ocorreu lendo O medo no Ocidente, do Jean Delumeau, um livro desses grossões que você nunca sabe direito porque comprou e que depois pira com ele. A Bíblia é outra fonte. Mas Machado de Assis é que é a bíblia para quem quer pregar sobre a mulher.

JC – O hotel é um dos ambientes presentes nas narrativas. Isto reflete seu permanente estado de deslocamento entre Recife, Rio, São Paulo e Brasília?

SIDNEY ROCHA – É. O hotel é o único confinamento a que me permito. Adoro hotéis. Tem um conto escrito pra uma poltrona de hotel. Ou como eu disse, para a possibilidade do mundo feminino ou da existência humana em qualquer coisa. Um amigo escritor me disse que agora anda desconfiado dos móveis na casa dele. Esse pesadelo não é mesmo fascinante? O fato de qualquer um de nós se coisificar completamente? Num hotel, as pessoas podem se coisificar com mais classe, me permito. O livro foi completamente escrito em quartos de hotéis. Até no Recife, onde moro mais, quando chegava, ia prum hotel porque era necessário manter isto. Coisa de quem escreve, essa doidice. Lembro que minha filha Annyela foi me visitar dia desses num hotel, aqui no Recife. A gente riu muito disso.

JC – Algumas histórias se entrelaçam, como em Matriuska e Googlemap, um personagem de um texto dialoga com o do outro, como é o caso da índia que é violentada.

SIDNEY ROCHA – Esta é a contribuição do romancista que sou aos contos da Matriuska. (Engraçado como você falou isso, “o caso da índia que é violentada”. Eu não tinha visto isso assim, como você, ou seja, aquilo foi tão natural para ela (que é um bicho, uma onça, no caso), que passei “batido”. Mas o enredo é um só. Ou seja, cada conto vai virando o romance que se completa na cabeça de quem lê.

JC – Qual o efeito você buscou ao usar minúsculas em quase todo o texto, com exceção do início dos diálogos.

SIDNEY ROCHA – Tem a ver com essa esterilização e essa anestesia pelo qual o mundo passa. As pessoas vão pra frente da TV almoçar e assistir ao programa policial, à novela. As pessoas chegam no motel e ligam a TV. As pessoas não leem, na verdade. Tudo é uma gestalt muito estranha em tudo. Então forcei que o leitor atentasse para cada ponto, para cada início de fala, e “pontuei” o personagem exatamente ali. Ou seja, no caminho contrário, fui provocando uma sinestesia tanto no personagem quanto no leitor.

JC – Como foi para você o exercício de estilo de ir direto no osso da narrativa, sem arrodeios?

SIDNEY ROCHA – Quis escrever indo direto ao ponto, porque não tolero o exibicionismo da maioria dos escritores. A retórica com manteiga, como na cena de O último tango de Paris. O niilismo infundado. Dia desses, ao entrevistar o Ray Bradbury, descobri que ele alugava uma máquina de escrever e, porque não tinha grana, tinha que escrever como um doido por uma hora, e com isto sustentar a família. Fiquei interessado nisso, quer dizer, se eu tiver somente uma hora, posso convencer alguém com o meu trabalho de escritor? É lógico que eu não consegui. Mas a lição ficou.

JC – Muitos escritores que têm um estilo mais fluido, ou até mesmo floreado, possuem um estilo que não é puro exibicionismo, principalmente na escola francesa, inglesa e russa. Ou mesmo aqui no Brasil.

SIDNEY ROCHA – Isso é também uma verdade.

JC – Foi difícil de se despir do estilo usado em Sofia, uma ventania para dentro?

SIDNEY ROCHA – Não. Aquele é um livro de há muito tempo. No decorrer disso, já me perdi outras tantas vezes. A gente descobre no caminho que a busca do estilo é como a busca do amigo ideal e da mulher ideal e do amor ideal. Quem tem estilo é serial killer (não que eu não seja um).

JC – O que levou você a uma escrita telegráfica, antijoyceana, ou antibarroca, se preferir?

SIDNEY ROCHA – Quem gostava muito do Joyce era Lacan. Mas a inspiração, estranhamente é em Joyce, muitas vezes. Na forma como ele trata a mitologia e o dia a dia, o banal, no mesmo patamar, e por isso o banal em Joyce é sublime. Mas preferi menos “cera” do que Lacan, e “despsicoanalisei” o texto. Quando cai a máscara do sintoma, fica só a linguagem. O barroquismo é o sintoma. A linguagem é a peçonha, e é o que um escritor deve buscar.

JC – Então para você a narrativa é mais uma expressão do interior do personagem. Não se trata de narrar um situação, um fato?

SIDNEY ROCHA – Sim, mas o fato sempre tem início na personagem. De alguma forma, ele está preso ao fato. É como na mitologia, entende? Édipo já ia matar o pai antes de matá-lo, entende?

JC – Como foi a gestação ou construção de Matriuska e quanto tempo você passou na construção do livro?

SIDNEY ROCHA – Um livro começa antes de começar e termina depois de terminar. Mas o primeiro conto, o escrevi em maio de 2008, e o último em fevereiro de 2009. Nove meses. Cesariano, todavia.

JC – Foi um livro pensado, pesquisado e anotado ou a história fluiu e você foi escrevendo a golpes de cinzel? Ou a fórceps?

SIDNEY ROCHA – Em literatura, tudo tem que ser pensado. Não é fácil parir aos 43, meu amigo. Por isso a tecnologia? A tecnologia esticando a vida, mas encurtando a história. Enquanto isso, a mesma tecnologia segrega as pessoas aos twitteres, aos seguidos e seguidores, tudo virtual, ou seja, o fim dos relacionamentos de verdade concretiza o Fim da História. É “o último homem” de que fala (o cientista político Francis) Fukuyama.

JC – Para você, numa época em que o livro enfrenta tanta concorrência do meio digital, uma edição caprichada, de capa dura em tecido, é uma estratégia para conquistar o leitor ou é um cacoete de editor?

SIDNEY ROCHA – Acho que o Samuel Leon, da Iluminuras, responde melhor esta para ti. Mas vi que funcionou. Engraçado que este livro dá uma sensação diferente às pessoas.