Entrevista de Sidney Rocha para o Verbo 21
comenta processos de criação e projetos para o futuro.
GUSTAVO RIOS – Vejo as resenhas que falam de Matriuska, e todas – ao menos as que pude ler – possuem elementos comuns na tentativa de “explicar” o livro. Ou seja, todos os resenhistas e/ou críticos citam dois temas como principais eixos: o universo feminino e a morte. Você concorda com isso ou faltou acrescentar algo essencial?
SIDNEY ROCHA - Acho o reino da resenha e da crítica um universo em separado. Sempre achei a resenha uma peça literária deliciosa. Por exemplo, quando escrevo uma resenha, preciso que ela prescinda de tudo, inclusive do livro resenhado. Acho que é essa a intenção de um bom resenhador ou bom crítico. As boas resenhas que li sobre a Matriuska têm isso, de se sustentarem sem a existência do livro ou do autor do livro. São diferentes dos simples comentários pela internet, por exemplo, que tem essa "explosão", e que conduz outros a lerem o livro. Uma resenha não é um comercial nem um manifesto. Não pode ser peça de divulgação ou manifestação do fígado de quem a escreve. A resenha é como um enigma, é uma marca. Um evangelho sem deus algum. Gosto de pensar nisso assim.
Quanto aos eixos a que você se refere na Matriuska, não os considero assim, como demarcadores, limites, brechas, feixes. Muita gente falou, sim, dessas duas pulsações, a morte e a mulher, e se trata disso também. Mas o livro é um romancezinho disfarçado de contos, e fala especialmente sobre relações humanas, dessas para as quais as gentes têm perdido a sensibilidade para redescobrir sem o uso de equipamento apropriado. Nesse caso, os contos de Matriuska são o telescópio. E a linguagem é o microscópio.
G.R. – Alguns personagens me parecerem bastante reais. É como se eles tivessem realmente existido; como se você os tivesse conhecido de fato, nas situações descritas no livro. Outra coisa que percebi foi uma espécie de repetição, como se tal personagem voltasse em outra página, numa situação completamente diferente. Mesmo sendo um puta clichê, fica a pergunta: quanto da sua realidade serviu de inspiração na obra?
S.R. - Não me preocupo mesmo com a realidade, camarada. Faço uma literatura de possibilidades e se algo difere entre o meu trabalho e o sonho de uma criança ou a imaginação de um drogado ou a experiência de um homem comum, a diferença está somente na forma. A forma é tudo. Este falso romance vestido na pele dos contos está costurado assim, de forma que os personagens possam invadir a qualquer momento a "possibilidade" do outro personagem num outro conto. Esta tensão marca, principalmente, quatro das dezoito uno-narrativas de Matriuska. Quem o ler, verá a ligatura. E como não me utilizo de recursos ilusionistas e de nenhum barroquismo no meu texto, isso fica tão claro que o leitor, acreditando ter visto todos os nós desatados, acredita estar conduzindo algum tipo de realidade. Ou estar numa. Uma ilusão de compreensão, por assim dizer, esta é a dimensão do leitor. O autor só está a um (de)grau acima.
G.R. – Para mim todos os contos foram escritos como se fossem urgentes. Não pelo tamanho, nem pela falta de detalhes que sirvam de lastro para que o leitor viaje e entenda seu universo. Mas a forma como os textos surgem parece mostrar que você tinha pressa em dizer tudo aquilo. Em quanto tempo você concluiu a obra? E foi um processo pensado o tempo todo, ou a inspiração definiu o ritmo?
S.R. - Costumo dizer que, em literatura, tudo é pensado. O sonho mesmo, no ponto de vista da construção onírica, já é um produto elaborado. Nada está simplesmente posto. Quem imagina diferente, que largue o ofício imediatamente. Melhor: nem comece. Detesto quando se referem ao ato de escrever como inspiração ou mediunidade ou zen-budismo ultramoderno. Detesto romantismos. Um escritor não pode ser ingênuo a este ponto porque não há leitor ingênuo de jeito nenhum. Eu mesmo, como leitor, não seguiria uma leitura onde não visse um plano, uma intenção de quem escreve. Ler algo assim é como essa tolice de seguir pessoas no twitter: Uma perda de tempo.
Agora, quanto ao que você se referiu, o plano não está no detalhe, na cena, no cenário. Está no personagem. Mas hoje que estou bonzinho vou lhe dizer o truque completo. Não está sequer no personagem, está na situação onde se coloca o personagem.
E aí onde entra a forma, não o formalismo da regra. A linguagem a serviço da narrativa, não da retórica e nem especialmente à norma gramatical por excelência. Lógico que não se trata de um desbunde, de um desmando, de um desmonte, de um desmantelo. Trata-se de firmeza, não de experimentações.
Já o livro, o escrevi em nove meses. Isto mesmo: o tempo de uma gestação (não lembro em quanto tempo as vacas são paridas). Foi outra coincidência. Na verdade, ele foi feito enquanto trabalhava em algo muito pesado, que era escrever roteiros para programas de tv, e aquilo, eu sentia, podia acabar com os meus ânimos de escritor. Na época, estava morando em hotéis, talvez venha disso a sua impressão de urgência, que mais lhe digo ser transitoriedade, trânsito. Então abri uma pasta no notebook, a nomeei de "ficar vivo", e fui escrevendo os contos e jogando lá.
G.R. - Sendo um processo pensado então, pergunto: qual seria o ponto de partida (se é que dá para responder a pergunta de forma simples) para os contos “egg” e “nuvem”? Parece uma pergunta cretina. E pode até ser mesmo. Mas, para mim, são dois exemplos onde o leitor deve se perguntar: “Onde o Sidney tira ideias desse tipo?”
S.R. – Gustavo, você que escreve sabe que as ideias vêm de lugar nenhum e de todos ao mesmo tempo. Nós que escrevemos também sabemos que o resultado do que escrevemos é a soma do tempo de observação, maturação, ócio e muito cálculo também. Portanto, é injusto imaginar que seja aquele dado momento que forneceu o “insight” pra determinado conto ou cena do romance. Mas é divertido lembrar elementos do processo criativo que, afinal, só servem mesmo para o escritor. Para que você tenha uma ideia, este conto que você mencionou, “nuvem”, tinha quinze páginas na sua versão original. Os personagens, a família Brian, eram lavradores, e tudo se passava na Segunda Guerra, na Europa. Tinha uma epígrafe do Antigo Testamento, sobre as pragas do Egito, era quase uma novela. Quem pudesse ler as duas versões entenderia um pouco do processo. Finalmente, no livro, o conto não alcança duas páginas. Fui guindado a escrever o conto desescrevendo aquela novelinha (porque era este o meu objetivo, escrever os contos, e jogar fora qualquer narrativa que tentasse me impedir no caminho) e, mantive o narrador, que parece sobrevoar, como se emprestasse ao conto uma atmosfera sombria, em off, uma fumaça. Depois é que tudo se transformou no essencial do conto. Ocorre muito isto comigo (Atualmente estou debastando um conto sobre um anão e nisso já trabalho há quatro meses, praticamente todos os dias).
Já o conto “egg” acometeu-me num hotel em São Paulo. Egg é um tipo de poltrona, desenhada por importante designer, e dei este nome a minha personagem. Tudo tem a ver com o consumo, em Matriuska. Mas tudo gratuitamente, sem querer transformar nada em sociologismos ou psicologismos ou “egg-ajamentos”, saca?
G.R. – O livro também parece que agradou a muita gente e a imprensa em geral.
S.R. - Foi. As pessoas podem ver algumas das críticas em um blog [http://matriuskando.blogspot.com] que um leitor está alimentando. O Estadão disse que o Matriuska era uma das grandes surpresas dos últimos tempos. O Marcelino [Freire] garantiu que era um dos melhores livros do ano etc., etc., mas importante é que as pessoas leiam, e botem suas conclusões nisso.
G.R. – Um escritor, não tendo domínio das outras etapas editoriais que ocorrem no processo de publicação, consegue, no máximo, imaginar o resultado final da obra. Falo da divulgação, do formato, do livro pronto. Você, sendo também um editor, colaborou na parte gráfica da obra. Além disso, outras questões sobre Matriuska (tiragens, divulgação etc.) tiveram sua participação?
S.R. - Quis me ausentar ao máximo de tudo neste livro. Venho caminhando nesse sentido, em quase tudo na vida. O ofício de editor lhe deixa sempre antenado com os processos, mas o fato de ter um editor como o Samuel Leon, da Iluminuras, deixa qualquer autor não somente à vontade, mas também muito bem "posto no seu devido lugar". Portanto, tudo segue bem, profissionalmente. Ainda não pude me livrar da parte hardcore, que é a coisa de lançamentos, aparições, o teatro dos lançamentos, mas confesso que venho encontrando prazer nisso também, como um ator, além de autor.
G.R. – Conte um pouco sobre o filme que surgiu do livro.
S.R. - Há muito que venho aproximando a minha produção ao cinema. Talvez porque a minha experiência de roteirista às vezes me leve a isto, muito embora a figura do roteirista às vezes seja tão distante da figura do escritor que a maioria das pessoas não acreditaria, vendo na prática. Há muito bons roteiristas que são péssimos escritores, e vice-versa. Além disso, não há nada pior para o cinema que a literatura e nada pior para a literatura que o cinema. Claro que isso é uma provocação. Mas esse debate a gente trava depois.
No caso do curta "Matriuska", Pablo Polo é o diretor, Isabela Cribari é a produtora executiva, e ele foi filmado todo no Recife. O Pablo escreveu lá abaixo dos créditos: "A Sidney Rocha, esse incendiário", porque eu o desafiei a fazer um filme sem romantismos também, sem esperar que chova grana, sem esperar que pare de chover chuva mesmo dos céus, um filme onde tudo fosse como escrever, um fast-movie, mas usando especialmente o fantástico talento que Pablo tem para o set, para a cena, para a direção de atores. E ele aceitou. E fez. Aquilo mexeu com a equipe toda, técnicos, atores, produtores, patrocinadores. Isto foi muito legal. Isto a literatura perde para o cinema. Esse prazer coletivo. O filme está percorrendo festivais por aí. Mais não sei. Mais que isso pergunte pro Pablo.
G.R.- Tenho a impressão que seu livro, surgido no final de uma década em que, aparentemente, a literatura brasileira ganhou em ruído, mas perdeu em essência. O próprio Marcelino Freire falou disso, se não me engano. Parece-me que Matriuska começa uma nova fase. Para você sua obra poderá influenciar novos escritores?
S.R. - Escrevo para leitores. Não me preocupo com outros escritores. Quero influenciar o modo como as pessoas leem.
G.R. - Quais seus próximos projetos?
S.R. - Sei que o meu romance Sofia tem chances de ser publicado para a rede de bibliotecas e escolas pelo Brasil afora, ainda em 2010. (Debastei o texto e o livro ganhou em clareza. Faço isso constantemente ao meu texto, mudo o que quero, quando quero, se não for coisa de contrato).
Aceitei o convite de participar da coletânea do Nelson Oliveira, para o Boitempo, sobre a literatura que vem se produzindo no Brasil, e que sai também agora.
Estou escrevendo novelas, e terminando um romance, que devo à editora desde o ano passado. Mas vou terminá-lo. Viajo agora para terminar. Não consigo viver sem alguma viagem, porque cada chegada em algum lugar sempre considero um começo, e isto é animador. Ah, mas antes de tudo, estou tentando me livrar daquele anão que te falei. Depois dele, o dilúvio.
Mais sobre o livro:
http://www.matriuska.com.br/
http://sequicosacro.blogspot.com/
Programa Espaço Aberto - Literatura - Globonews
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
Todas as importâncias da personagem
A metáfora das bonequinhas russas servem tanto para explicar a temática trabalhada por Sidney, das mulheres e dilemas próprios delas, como também para ilustrar a forma com que o autor constrói as narrativas.
por Tatiana Faria
Uma vez conversando com um conhecido, versávamos sobre a motivação e a paixão pela literatura e, tentávamos um convencer o outro, dos sentidos, sentimentos e motivações que a literatura é capaz de causar. Pode ser devido aos meus vinte e uno anos ou ás constantes referências que as outras artes exercem em mim, mas o que eu gosto mesmo na literatura é quando ela faz com que o meu coração bata mais rápido e me leve a perguntas, na maioria das vezes, difíceis (ou impossíveis) de responder.
Com o passar do tempo, e me esforçando um pouco para adquirir algum repertório que fosse, me deslumbrei com muitas palpitações no coração, pude perceber, então, que as paixões eram consequentemente motivadas pelo gosto e que este tinha a ver com o habito, referências temáticas e estilísticas anteriores e com alguma influência de um repertório pessoal. Como tenho como tendência seguir e viver as paixões, resolvi aceitá-las e vivê-las em cada folheada de papel que por algum motivo me motivasse.
Assumo que prefiro os que me inspiram devido às inovações estilísticas, temáticas e principalmente aqueles que mal consigo explicar, quiçá racionalizar. E que mesmo tendo acesso e razoável compreensão das teorias literárias, estéticas e filosóficas, e ainda, alguma pitada de criatividade, continuo acreditando que nem tudo é capaz de explicação, e mesmo que um dia haja explicação para tudo, continuarei acreditando na superação da literatura e no surgimento de narrativas que continuem provando que nem tudo se explica, pois pretendo continuar vivendo as paixões.
Matriuska me ganhou logo de começo. A metáfora das bonequinhas russas servem tanto para explicar a temática trabalhada por Sidney, das mulheres e dilemas próprios delas, como também para ilustrar a forma com que o autor constrói as narrativas. É um livro de contos que facilmente pode ser estudado ou lido como uma narrativa romanesca, já que existe uma unidade entre os contos (ou capítulos) no que diz respeito ao tema, as personagens e a forma com que o autor molda todo o enredo. Como nas bonequinhas, que variam apenas pelo tamanho, mas que conservam na sua essência a forma, o livro trabalha concomitantemente com a variação do enredo (representando a individualidade e autonomia de cada conto) e com a repetição do tema (representando a coletividade existente entre eles).
Sidney retrata as peculiaridades femininas com singeleza e intensidade na mesma medida. Singelas, pois constrói o enredo através da descrição de ações e não procura explicar nem reduzir as experiências das personagens a possíveis construções morais ou apenas a temas centrais, abrangendo a experiência da leitura, pois ao não explicá-las o universo interpretativo se expande, e consequentemente se enriquece. Dessa maneira, a intensidade das suas ações se intensifica, muito por consequência de um apelo formal utilizado pelo autor, que fragmenta as vivências e descreve apenas o clímax de cada uma delas, tornando-as intensas e arrebatadoras na forma e na experiência obtida através delas.
A construção narrativa do livro é baseada, sobretudo, na construção das ações das personagens. Em muitos aspectos, a técnica empregada pelo autor se assemelha às construções utilizadas no cinema, em que há um desenvolvimento da história através das ações das personagens. No livro, as ações e objetos constroem simbolicamente as personagens e as questões abordadas por ela no conto, como a bolsa do conto "Matriuska" que carrega todas as importâncias da personagem. A apresentação da personagem através dos objetos quantifica as suas angústias e singularidades, além de produzir uma valorização do tema e da adjetivação utilizada no texto. Como, por exemplo, no trecho: “A solidão de um brinco que largara no mundo o seu par”. O autor usa de dois recursos formais para retratar a solidão da personagem. A metáfora dos brincos sem par e a adjetivação dessa experiência, através da utilização do termo “solidão” no começo da frase.
Em alguns momentos da minha leitura, me conflitava com a indecisão de continuá-la ou de deixá-la momentaneamente. Tratam-se de narrativas muito intensas tanto na forma quanto no conteúdo. Um pouquinho dela por dia já é suficiente para um deslumbramento completo em relação aos desdobramentos de questões formais relacionadas à literatura atual, que muitos julgam erroneamente não existir mais transgressão formal inovadora, e que este se encarrega de apresentar com completa maestria. Porém é necessário ressaltar que essa intensificação da forma e da experiência está relacionada à fragmentação das histórias a situações em sua maioria muito isoladas, como podemos observar se conflitarmos as relações entre os contos "Matriuska" e "Googlemap", em que mesmo ligadas através da mesma personagem e transformando as duas histórias em uma parte integrante da outra, mais uma vez trabalhando formalmente o conceito que dá nome ao livro (Matriuska), as narrativas continuam espaçadas e isoladas em experiências amplamente individualizadas da mesma personagem. E esse vai-e-vem entre a relação e o isolamento entre os contos, oferece a nós, leitores, a estranha sensação de expansão das experiências e logo em seguida de síntese delas.
A tendência a fragmentação das experiências artísticas em quase blocos, muito intensos, mas desconexos de um todo, tem sido amplamente explorado em vários campos das artes, como podemos observar ao conflitarmos a literatura atual com o tratado do Teatro Pós- dramático de Lhemann que diz que um dos pilares do teatro atual está na valorização da autonomia da cena e na recusa a qualquer tipo de “textocentrismo”. Se optarmos pela comparação entre as questões estéticas trabalhadas na atualidade entre os diversos segmentos artísticos, observaremos primeiro que os limites entre elas tornaram-se cada vez mais tênues e segundo que elas seguem tendências muito próximas em relação às inovações formais.
Os padrões regulares de classificação da literatura já não dão conta da atual ao romperem com os aspectos formais. Em relação ao gênero romanesco, não apresentam mais as unidades básicas da narrativa, o começo, o meio e o fim, e em relação a sua categorização como conto, possuem estruturas muito regulares no que diz respeito á construção formal e temática, esbarrando nos padrões autárquicos referendados nas teorias formais em relação aos aspectos do conto (em especial, as propostas por Júlio Cortázar). A hibridização do texto certamente aparece como a principal inovação formal e, consequentemente, tendência da cena literária atual. A dificuldade de classificação nos mostra a defasagem da teoria literária em relação aos aspectos contemporâneos, é certo que é necessário tempo para que alguns movimentos sejam reconhecidos e estudados, porém esse tempo, supostamente necessário, implica na defasagem entre obra, contexto histórico e construção crítica. Dessa maneira, parece que tudo na arte atual torna-se vanguarda, pois há um distanciamento enorme entre obra e teoria no que diz respeito aos aspectos temporais e, dessa maneira, muitas vezes a arte é acusada de não condizer com o seu tempo, enquanto o movimento deveria ser oposto, pois é crítica que não tem dado conta dele.
Ao ler o livro de contos de Sidney, senti (e ainda sinto) muita dificuldade em desvendar algumas construções formais empregadas por ele. Certamente esta dificuldade resulta concomitantemente da inovação estilística abordada por ele e da minha limitada percepção em relação aos padrões atuais. Pode ser também que daqui a 20 anos leia Matriuska e perceba que o meu equívoco não estava na incompreensão no texto, mas sim nele próprio e que não se trata de algo tão brilhante e inovador assim. Porém, ao me sentir motivada e viva durante a leitura, devo apostar em sua maestria hoje e daqui a 20 anos, pois são as palpitações que me tornam viva e a busca pelas explicações delas que me torna capaz de vivê-las.
por Tatiana Faria
Uma vez conversando com um conhecido, versávamos sobre a motivação e a paixão pela literatura e, tentávamos um convencer o outro, dos sentidos, sentimentos e motivações que a literatura é capaz de causar. Pode ser devido aos meus vinte e uno anos ou ás constantes referências que as outras artes exercem em mim, mas o que eu gosto mesmo na literatura é quando ela faz com que o meu coração bata mais rápido e me leve a perguntas, na maioria das vezes, difíceis (ou impossíveis) de responder.
Com o passar do tempo, e me esforçando um pouco para adquirir algum repertório que fosse, me deslumbrei com muitas palpitações no coração, pude perceber, então, que as paixões eram consequentemente motivadas pelo gosto e que este tinha a ver com o habito, referências temáticas e estilísticas anteriores e com alguma influência de um repertório pessoal. Como tenho como tendência seguir e viver as paixões, resolvi aceitá-las e vivê-las em cada folheada de papel que por algum motivo me motivasse.
Assumo que prefiro os que me inspiram devido às inovações estilísticas, temáticas e principalmente aqueles que mal consigo explicar, quiçá racionalizar. E que mesmo tendo acesso e razoável compreensão das teorias literárias, estéticas e filosóficas, e ainda, alguma pitada de criatividade, continuo acreditando que nem tudo é capaz de explicação, e mesmo que um dia haja explicação para tudo, continuarei acreditando na superação da literatura e no surgimento de narrativas que continuem provando que nem tudo se explica, pois pretendo continuar vivendo as paixões.
Matriuska me ganhou logo de começo. A metáfora das bonequinhas russas servem tanto para explicar a temática trabalhada por Sidney, das mulheres e dilemas próprios delas, como também para ilustrar a forma com que o autor constrói as narrativas. É um livro de contos que facilmente pode ser estudado ou lido como uma narrativa romanesca, já que existe uma unidade entre os contos (ou capítulos) no que diz respeito ao tema, as personagens e a forma com que o autor molda todo o enredo. Como nas bonequinhas, que variam apenas pelo tamanho, mas que conservam na sua essência a forma, o livro trabalha concomitantemente com a variação do enredo (representando a individualidade e autonomia de cada conto) e com a repetição do tema (representando a coletividade existente entre eles).
Sidney retrata as peculiaridades femininas com singeleza e intensidade na mesma medida. Singelas, pois constrói o enredo através da descrição de ações e não procura explicar nem reduzir as experiências das personagens a possíveis construções morais ou apenas a temas centrais, abrangendo a experiência da leitura, pois ao não explicá-las o universo interpretativo se expande, e consequentemente se enriquece. Dessa maneira, a intensidade das suas ações se intensifica, muito por consequência de um apelo formal utilizado pelo autor, que fragmenta as vivências e descreve apenas o clímax de cada uma delas, tornando-as intensas e arrebatadoras na forma e na experiência obtida através delas.
A construção narrativa do livro é baseada, sobretudo, na construção das ações das personagens. Em muitos aspectos, a técnica empregada pelo autor se assemelha às construções utilizadas no cinema, em que há um desenvolvimento da história através das ações das personagens. No livro, as ações e objetos constroem simbolicamente as personagens e as questões abordadas por ela no conto, como a bolsa do conto "Matriuska" que carrega todas as importâncias da personagem. A apresentação da personagem através dos objetos quantifica as suas angústias e singularidades, além de produzir uma valorização do tema e da adjetivação utilizada no texto. Como, por exemplo, no trecho: “A solidão de um brinco que largara no mundo o seu par”. O autor usa de dois recursos formais para retratar a solidão da personagem. A metáfora dos brincos sem par e a adjetivação dessa experiência, através da utilização do termo “solidão” no começo da frase.
Em alguns momentos da minha leitura, me conflitava com a indecisão de continuá-la ou de deixá-la momentaneamente. Tratam-se de narrativas muito intensas tanto na forma quanto no conteúdo. Um pouquinho dela por dia já é suficiente para um deslumbramento completo em relação aos desdobramentos de questões formais relacionadas à literatura atual, que muitos julgam erroneamente não existir mais transgressão formal inovadora, e que este se encarrega de apresentar com completa maestria. Porém é necessário ressaltar que essa intensificação da forma e da experiência está relacionada à fragmentação das histórias a situações em sua maioria muito isoladas, como podemos observar se conflitarmos as relações entre os contos "Matriuska" e "Googlemap", em que mesmo ligadas através da mesma personagem e transformando as duas histórias em uma parte integrante da outra, mais uma vez trabalhando formalmente o conceito que dá nome ao livro (Matriuska), as narrativas continuam espaçadas e isoladas em experiências amplamente individualizadas da mesma personagem. E esse vai-e-vem entre a relação e o isolamento entre os contos, oferece a nós, leitores, a estranha sensação de expansão das experiências e logo em seguida de síntese delas.
A tendência a fragmentação das experiências artísticas em quase blocos, muito intensos, mas desconexos de um todo, tem sido amplamente explorado em vários campos das artes, como podemos observar ao conflitarmos a literatura atual com o tratado do Teatro Pós- dramático de Lhemann que diz que um dos pilares do teatro atual está na valorização da autonomia da cena e na recusa a qualquer tipo de “textocentrismo”. Se optarmos pela comparação entre as questões estéticas trabalhadas na atualidade entre os diversos segmentos artísticos, observaremos primeiro que os limites entre elas tornaram-se cada vez mais tênues e segundo que elas seguem tendências muito próximas em relação às inovações formais.
Os padrões regulares de classificação da literatura já não dão conta da atual ao romperem com os aspectos formais. Em relação ao gênero romanesco, não apresentam mais as unidades básicas da narrativa, o começo, o meio e o fim, e em relação a sua categorização como conto, possuem estruturas muito regulares no que diz respeito á construção formal e temática, esbarrando nos padrões autárquicos referendados nas teorias formais em relação aos aspectos do conto (em especial, as propostas por Júlio Cortázar). A hibridização do texto certamente aparece como a principal inovação formal e, consequentemente, tendência da cena literária atual. A dificuldade de classificação nos mostra a defasagem da teoria literária em relação aos aspectos contemporâneos, é certo que é necessário tempo para que alguns movimentos sejam reconhecidos e estudados, porém esse tempo, supostamente necessário, implica na defasagem entre obra, contexto histórico e construção crítica. Dessa maneira, parece que tudo na arte atual torna-se vanguarda, pois há um distanciamento enorme entre obra e teoria no que diz respeito aos aspectos temporais e, dessa maneira, muitas vezes a arte é acusada de não condizer com o seu tempo, enquanto o movimento deveria ser oposto, pois é crítica que não tem dado conta dele.
Ao ler o livro de contos de Sidney, senti (e ainda sinto) muita dificuldade em desvendar algumas construções formais empregadas por ele. Certamente esta dificuldade resulta concomitantemente da inovação estilística abordada por ele e da minha limitada percepção em relação aos padrões atuais. Pode ser também que daqui a 20 anos leia Matriuska e perceba que o meu equívoco não estava na incompreensão no texto, mas sim nele próprio e que não se trata de algo tão brilhante e inovador assim. Porém, ao me sentir motivada e viva durante a leitura, devo apostar em sua maestria hoje e daqui a 20 anos, pois são as palpitações que me tornam viva e a busca pelas explicações delas que me torna capaz de vivê-las.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Gravatas e borboletas
por Marcelino Freire
Conhece Sidney Rocha? Ora. Faz tempo que ele existe. Desde que li, faz um tempo danado, a sua novela Calango-tango, eu sentia falta do texto dele. Do trinado, do ciscado. Da prece que ele faz. Do rebuliço de seus personagens. Seus parágrafos certeiros. Seu jeito de prosear. Poética, assim, medonha. Estética sem cerimônia. Sim, ele também lançou o romance Sofia. De repente, eis que ele volta, com este livro de contos curtos. E assustadores. Porque inovadores. Porque musicais, etc. e tais. E porque dificilmente existe autor como ele. Falando de certas mulheres. De certos recalques. Sem ser chato, entende? Sem querer ser o dono-da-cocada. O pior sujeito é aquele que se acha. Facilmente. Aquele que coloca borboleta na gravata para escrever. E não voa. Não sai da mesmice. Eta porra! Sidney tem o que eu aprecio em to-do coração arredio: a pulsação. A verdade. O senti-mento que está na linguagem. Nos sons que ele costura tão bem. Tão modernamente, saravá, amém!
Caro leitor, pode apostar: pegue este livro [Matriuska] na mão e veja se eu não tenho razão. Resumindo: são contos-cantos que vêm inovar e sacudir a prosa brasileira. E depois seguir por aí. Descendo e subindo a ladeira. Deixando seu sangue na gente. Assim, tão raro e para sempre!
Conhece Sidney Rocha? Ora. Faz tempo que ele existe. Desde que li, faz um tempo danado, a sua novela Calango-tango, eu sentia falta do texto dele. Do trinado, do ciscado. Da prece que ele faz. Do rebuliço de seus personagens. Seus parágrafos certeiros. Seu jeito de prosear. Poética, assim, medonha. Estética sem cerimônia. Sim, ele também lançou o romance Sofia. De repente, eis que ele volta, com este livro de contos curtos. E assustadores. Porque inovadores. Porque musicais, etc. e tais. E porque dificilmente existe autor como ele. Falando de certas mulheres. De certos recalques. Sem ser chato, entende? Sem querer ser o dono-da-cocada. O pior sujeito é aquele que se acha. Facilmente. Aquele que coloca borboleta na gravata para escrever. E não voa. Não sai da mesmice. Eta porra! Sidney tem o que eu aprecio em to-do coração arredio: a pulsação. A verdade. O senti-mento que está na linguagem. Nos sons que ele costura tão bem. Tão modernamente, saravá, amém!
Caro leitor, pode apostar: pegue este livro [Matriuska] na mão e veja se eu não tenho razão. Resumindo: são contos-cantos que vêm inovar e sacudir a prosa brasileira. E depois seguir por aí. Descendo e subindo a ladeira. Deixando seu sangue na gente. Assim, tão raro e para sempre!
fascinada angústia
por Mário Hélio
“Nós não vamos a lugar nenhum”. É a frase. Mais que frase. Sentença. De uma personagem. Não só de uma. Destino de tudo. Do que vive, do que não nasceu e do que não virá. No plano mais geral, quase metafísico, parece terrível, no meio específico, do cotidiano, assume, no entanto, o seu sentido mais doloroso, a fragilidade do cotidiano desafortunado: o que move cada uma das figuras em ação neste livro.
Lugar nenhum define a Utopia. o Fim da utopia. Urbanos, demasiado urbanos, estes contos são retalhos, fragmentos, pedaços de vida, histórias-partidas, peças desarticuladas como as que (em)prega o destino. Estranhamente, essa desarticulação é estrutural. Tudo aqui parece (de)composição. Como uma fuga.
Na falta de melhor nome o gênero disto se chama de conto. Mas de que conto se trata? Se todas as histórias se enovelam como se não pudessem estar separadas, como se encontrassem labirintos em tudo, não apenas nos cabelos do deserto e nas selvas selvagens ásperas e fortes das cebolas.
Babuska ou Matriuska assume, claro, aqui mais do que o literal das bonecas russas, alcança o literário, o simbólico, e o simbólico é, por todos os feitos, mais do que o eterno (ou fugaz) feminino. É a maternidade, a vida mesma, como disse o poeta, sem mistificação, a vida contendo a morte, como uma estranha matriuska, e uma coisa parece não oposta, mas contida na outra, não somente na narrativa que dá título ao livro, mas nas outras, como neste exemplo de “mastruz”:
E no caso de diversas personagens, não é só a vontade de morrer, mas a consecução o que se performa. Nestas histórias tristes e violentas, há mais a introversão de suicídios e abortos que a extroversão de homicídios e infanticídios.
A morte é algo familiar neste livro [Matriuska ], seja como vontade no último texto referido, seja noutro que se explicita em expressões como esta: “eu tava parindo era a morte”, e é justo dessas tensões maternidade-morte que brotam as muitas ironias de que enchem estas histórias: “mãe entende de tudo, mas pra tudo não deu”. Há muitas iro¬nias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define “pause”, quando o que se tem mesmo é o começo do fim.
Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: “ela precisava de dois dias”.
Com sutis alegorias e associações de ideias, há menções veladas à mitologia, mas recriada de modo inteligente – como fez Joyce no Ulysses, cotidianizando, vulgarizando o que outrora teria sido solene. Assim é que “o crochê: tinha terminado” evoca, evidentemente, a última das três parcas. Há outros em que ironicamente se refere a uma “Nereida” e a uma “Diana”.
Além das referências pagãs, há também de sobra as cristãs (claras ou disfarçadas), como Ruth, Guadalupe, Ana, Maggie, Cristiane, Rutilene etc.
E há histórias em que o “acerto de contas” parece dar o tom. Em “feedback” pode-se evocar o Rulfo de “Você não escuta os cães latirem?”. Só que desta vez não é a recriminação pai-filho, e sim mulher-marido.
As mulheres, na verdade, dão o tom e são o tema de todas as histórias. Os seus nomes pseudossolenes aparecem quase displicentes: Marisa, Ana, Rutilene, Cristiane, Ruth, Cleonice, Jane, Guadalupe, Zulmira, Lucinha, Yoko, Rebeca, Martinha.
Matriuska batiza o livro. Mas a russa não é a única boneca que titula histórias, há também outra que se ba¬tizou de Barbie. A matriuska é rechonchuda e “real”. A Barbie é magra e “ideal”, um dos grandes ícones das curvas e linhas do feminino nesta parte do Ocidente e neste momento da história. Diferentemente da matriuska, que é feita de acrescentamento de outras bonecas, ou dela mesma em vários tamanhos, a Barbie apenas troca de roupa. Camadas e camadas de uma que se veste de si mesma; camadas e camadas de outra que multiplica a superfície. Uma mise-en-scène, outra mise-en-abyme. Uma será sempre filha, em seus teatros para fora; outra será sempre mãe, em suas quedas para dentro.
A Barbie acabou de completar 50 anos. Nesse mesmo ano de 1959, quando por assim dizer nascia a Barbie, saiu uma versão castelhana das Crônicas marcianas de Bradbury prefaciada por Jorge Luis Borges. No seu texto ele se remete a um leitura que fizera 50 anos: “com fascinada angústia, no crepúsculo de uma casa que já não existe, Os primeiros homens na lua, de Wells”. Mal sabia Borges que dez anos depois de 1959 se cumpriria não o sonho de Wells (de 1901), mas o de Verne, que é bem anterior (Da terra à lua, de 1865, e À volta da lua, que é de 1869). Mas no texto de Borges há outra menção temporal que vale a pena referir: “Bradbury escreve 2004 e sentimos a gravitação, a fadiga, a vasta e vaga acumulação do passado”.
Bradbury escreve para o futuro e Borges o lê assim. E agora – 2009 – o futuro já é passado? A resposta à per¬gunta é mais difícil do que parece, como aliás já notou há séculos Santo Agostinho, na passagem famosa das suas Confissões. A pergunta aqui é outra — não o que é o tempo?, mas o que é o tempo destas histórias de ficção. Em que tempo vivem as Marisas e Guadalupes destes contos. Como costuma acontecer quando se constroem bem as personagens — e aqui elas não são desenvolvidas de modo convencional porque apenas existem inseparáveis dos fatos, são mesmo escravas deles — ganham uma estranha vivência, uma inquietante familiaridade.
Essas bonecas não são de plástico. São matriuskas de carne, em carne(água)-viva, e se uma delas sabe “deixar o tempo correr”, não é propria¬mente de tempo que fala, mas do sangue. Boas histórias, mais do que as guerras, costumam promover bons derramamentos de sangue, e estas ainda vêm com o bônus da “fascinada angústia” ou da fascinação angustiada que parece ser a verdadeira casa de bonecas de todo bom narrador.
“Nós não vamos a lugar nenhum”. É a frase. Mais que frase. Sentença. De uma personagem. Não só de uma. Destino de tudo. Do que vive, do que não nasceu e do que não virá. No plano mais geral, quase metafísico, parece terrível, no meio específico, do cotidiano, assume, no entanto, o seu sentido mais doloroso, a fragilidade do cotidiano desafortunado: o que move cada uma das figuras em ação neste livro.
Lugar nenhum define a Utopia. o Fim da utopia. Urbanos, demasiado urbanos, estes contos são retalhos, fragmentos, pedaços de vida, histórias-partidas, peças desarticuladas como as que (em)prega o destino. Estranhamente, essa desarticulação é estrutural. Tudo aqui parece (de)composição. Como uma fuga.
Na falta de melhor nome o gênero disto se chama de conto. Mas de que conto se trata? Se todas as histórias se enovelam como se não pudessem estar separadas, como se encontrassem labirintos em tudo, não apenas nos cabelos do deserto e nas selvas selvagens ásperas e fortes das cebolas.
Babuska ou Matriuska assume, claro, aqui mais do que o literal das bonecas russas, alcança o literário, o simbólico, e o simbólico é, por todos os feitos, mais do que o eterno (ou fugaz) feminino. É a maternidade, a vida mesma, como disse o poeta, sem mistificação, a vida contendo a morte, como uma estranha matriuska, e uma coisa parece não oposta, mas contida na outra, não somente na narrativa que dá título ao livro, mas nas outras, como neste exemplo de “mastruz”:
“desígnios de deus, desígnios de deus... se não morri naquele dia e hora, minha mãe, não foi por obra e graça, mas muito mais por culpa do doutor. (...) quando o fraquejo vem, porque vem, minha mãe, porque a vontade de morrer”.
E no caso de diversas personagens, não é só a vontade de morrer, mas a consecução o que se performa. Nestas histórias tristes e violentas, há mais a introversão de suicídios e abortos que a extroversão de homicídios e infanticídios.
A morte é algo familiar neste livro [Matriuska ], seja como vontade no último texto referido, seja noutro que se explicita em expressões como esta: “eu tava parindo era a morte”, e é justo dessas tensões maternidade-morte que brotam as muitas ironias de que enchem estas histórias: “mãe entende de tudo, mas pra tudo não deu”. Há muitas iro¬nias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define “pause”, quando o que se tem mesmo é o começo do fim.
Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: “ela precisava de dois dias”.
Com sutis alegorias e associações de ideias, há menções veladas à mitologia, mas recriada de modo inteligente – como fez Joyce no Ulysses, cotidianizando, vulgarizando o que outrora teria sido solene. Assim é que “o crochê: tinha terminado” evoca, evidentemente, a última das três parcas. Há outros em que ironicamente se refere a uma “Nereida” e a uma “Diana”.
Além das referências pagãs, há também de sobra as cristãs (claras ou disfarçadas), como Ruth, Guadalupe, Ana, Maggie, Cristiane, Rutilene etc.
E há histórias em que o “acerto de contas” parece dar o tom. Em “feedback” pode-se evocar o Rulfo de “Você não escuta os cães latirem?”. Só que desta vez não é a recriminação pai-filho, e sim mulher-marido.
As mulheres, na verdade, dão o tom e são o tema de todas as histórias. Os seus nomes pseudossolenes aparecem quase displicentes: Marisa, Ana, Rutilene, Cristiane, Ruth, Cleonice, Jane, Guadalupe, Zulmira, Lucinha, Yoko, Rebeca, Martinha.
Matriuska batiza o livro. Mas a russa não é a única boneca que titula histórias, há também outra que se ba¬tizou de Barbie. A matriuska é rechonchuda e “real”. A Barbie é magra e “ideal”, um dos grandes ícones das curvas e linhas do feminino nesta parte do Ocidente e neste momento da história. Diferentemente da matriuska, que é feita de acrescentamento de outras bonecas, ou dela mesma em vários tamanhos, a Barbie apenas troca de roupa. Camadas e camadas de uma que se veste de si mesma; camadas e camadas de outra que multiplica a superfície. Uma mise-en-scène, outra mise-en-abyme. Uma será sempre filha, em seus teatros para fora; outra será sempre mãe, em suas quedas para dentro.
A Barbie acabou de completar 50 anos. Nesse mesmo ano de 1959, quando por assim dizer nascia a Barbie, saiu uma versão castelhana das Crônicas marcianas de Bradbury prefaciada por Jorge Luis Borges. No seu texto ele se remete a um leitura que fizera 50 anos: “com fascinada angústia, no crepúsculo de uma casa que já não existe, Os primeiros homens na lua, de Wells”. Mal sabia Borges que dez anos depois de 1959 se cumpriria não o sonho de Wells (de 1901), mas o de Verne, que é bem anterior (Da terra à lua, de 1865, e À volta da lua, que é de 1869). Mas no texto de Borges há outra menção temporal que vale a pena referir: “Bradbury escreve 2004 e sentimos a gravitação, a fadiga, a vasta e vaga acumulação do passado”.
Bradbury escreve para o futuro e Borges o lê assim. E agora – 2009 – o futuro já é passado? A resposta à per¬gunta é mais difícil do que parece, como aliás já notou há séculos Santo Agostinho, na passagem famosa das suas Confissões. A pergunta aqui é outra — não o que é o tempo?, mas o que é o tempo destas histórias de ficção. Em que tempo vivem as Marisas e Guadalupes destes contos. Como costuma acontecer quando se constroem bem as personagens — e aqui elas não são desenvolvidas de modo convencional porque apenas existem inseparáveis dos fatos, são mesmo escravas deles — ganham uma estranha vivência, uma inquietante familiaridade.
Essas bonecas não são de plástico. São matriuskas de carne, em carne(água)-viva, e se uma delas sabe “deixar o tempo correr”, não é propria¬mente de tempo que fala, mas do sangue. Boas histórias, mais do que as guerras, costumam promover bons derramamentos de sangue, e estas ainda vêm com o bônus da “fascinada angústia” ou da fascinação angustiada que parece ser a verdadeira casa de bonecas de todo bom narrador.
As frases-flecha de Sidney Rocha
por Gustavo Rios
para Verbo 21
Tem o papo meio batido de que Jorge Luís Borges supunha ser o livro tão somente uma repetição do possível. Ou seja, que tudo em literatura carecia de originalidade. Que os antecessores de qualquer escritor eram quem, no fim das contas, sopravam furtivamente frases ao pé de ouvido da sua vítima, desavisada e cheia de si, crendo estar criando algo novo.
Toda e qualquer obra deve ser considerada uma primazia. Ao menos para seu autor. Para mim, ser escritor é acreditar em si próprio. Reinventar a própria vida e carregar aquela arrogância típica de quem se acha Deus. É requisito básico para manter vivos os que escrevem. Aquelas pessoas metidas em noites sem fim, fumando seus cigarros ou não - para fugir do clichê barbado-fumante-tristonho-beberrão. Crédulas e donas de uma suposta estupidez necessária e vital.
E para tais figuras pouco importa se algum autor lhes sopra frases feitas no ouvido. Fazendo-o repetir algo que já foi, certamente, escrito. Pouco deve interessar se seus livros não funcionam. Ou se são umas belas merdas de capa dura: ainda assim, deve-se seguir em frente. Teimoso, arredio e burro. Mas dotado de alguma beleza que os diferencia dos demais.
Obviamente não defendo a tese de que todos são bons escritores. Estou falando de fé. Se ao menos a crença e uma deliberada cegueira não rolar no ato da escrita – aquele momento inspirado e meio louco; um ou dois palmos acima do chão -, melhor entregar os pontos, parceiro. Nada mais justo. Para todos.
Na verdade, suponho que o Borges queria dizer o quanto apreciamos uma gama de escritores que nos atormentar o juízo quando mais precisamos criar novos mundos sem interferências. E novas formas de dizer coisas que nos sufocam. Creio que o recado era simples: somos tributários de nossos autores, das nossas influências, da nossa estante. Ponto final. E isso para quem se propõe a resenhar uma obra é ótimo. Facilita entrar numas de traçar paralelos. Simplificar tudo fazendo comparações. Dando o caminho das pedras, que algumas vezes são pontudas e/ou escorregadias. E te levam para o breu.
Seguindo tais pedras corremos risco. E a vida ganha um brilho insuspeito.
Matriuska (Iluminuras, 2009, 95p.) me veio numa sexta onde eu, cansado e feliz, não esperava nada mais que o cair da tarde para umas cervejas e outras ondas à beira rio. Seria tudo simples, mas não menos gratificante. Ou seja, na busca de recuperar minhas derradeiras utopias – pois é isso que faço quando atravesso a BR e vou baixar em uma velha terra conhecida -, já sacava que os dias teriam aquela aura meio louca; aquele vagar e aquela mesma pegada.
Mas isso é outra história.
A primeira leitura foi rápida. Afinal estava com um livro curto, na quantidade de páginas. Supus não me demorar no entendimento. Logo entenderia os preceitos, veria finais relativamente óbvios e concordaria com o Borges, ainda que isso soe pretensioso pra caralho. Mas fui pego de supetão. E tive de repetir uma, duas, três vezes o mesmo ritual de esquecer todo o resto e deixar a cabeça viajar na estranheza dos textos.
Primeiro foram os títulos. Contos – se forem – chamados “sundown”, “zero-cal”, “carefree”, “barbie” e “déjà vu” merecem ou um desprezo certeiro, ou uma atenção preciosa. Conhecendo Sidney, optei pela segunda. Então acendi meus cigarros e silenciei por dentro. Porque o barulho viria. E era inevitável.
Um novo tipo de subversão – intencional ou não, that’s the question. O fio condutor, bastante arriscado como tema numa terra onde artistas supõem entender esse abismo de sorriso fácil e loucura entre os dentes: a mulher. Nada desse papo boçal de entender o sexo oposto. Sidney preferiu o sexo avesso, ao avesso. Seus personagens quando não gritam, reivindicam sua existência de forma sorrateira. Tornam-se inesquecíveis, vão para a cama com você, te propõem uma chupada a dez paus ou te pedem para contar sobre sua mais recente viagem, enquanto confessam: “Preciso sair daqui”.
Mandar a pontuação para a puta que pariu. Sacudir estereótipos e revigorar o absurdo na literatura, sem dar bola para escritores que sopram as mesmas e caquéticas frases feitas no ouvido. Disparar suas frases-flecha ao acaso, como quem mira no escuro, ou no copo colocado de sarro na cabeça da senhora Burroughs – e o velho Willian metido com a heroína de sempre e suas colagens cut up pretensamente vanguardistas, mas ininteligíveis e chatas, convenhamos. As histórias importam. Mas como elas surgem, esse tal zero absoluto tão raro, é o que me faz afirmar ser Matriuska um livro fabuloso.
E o que diferencia Sidney Rocha do resto é justamente isso: seu absurdo é musical, vivo, apesar do cortejo incessante da morte, outro tema presente e insinuado. Nada dessa onda de experimentar, meter palavras num liquidificador, sacudir e ponto final, para depois curtir o urinol do Duchamp cheio de pompa e com a cabeça saturada de merda. Sem essa de não ser compreendido e abrir o berreiro num boteco sujinho, cheio de auto-indulgência. Os contos do autor de Sofia, uma ventania para dentro (Ateliê Editorial, 2005, 208p.) nos pegam no contrapé, tornando crível – mas nem por isso sacal – todo um mundo que sai, sabe-se lá como, da cabeça desse escritor.
Uma poltrona de hotel que sonha (“egg”, página 81) e o conto chamado “nuvem” (página 45) me parecem excelentes exemplos. É o mesmo que dizer: senhores, a alma feminina está mais distante de nosso entendimento do que imaginamos; a morte, nem tanto. Eu, você e o Jorge Luís, amante dos livros, ainda que não os enxergasse, podemos estar errados, meu camarada.
Para mim, Rocha partiu do zero absoluto. Meteu-se confortavelmente no limbo das influências, dominador de suas capacidades literárias, para criar Matriuska. Um artesão, que concebe algo totalmente novo no território louco da criatividade. Dando um novo sentido ao impossível, partindo de um buraco negro, de um vazio de vozes. É como se ele tivesse esquecido tudo que leu. Ou tivesse tapado os ouvidos quando um ou outro escritor moribundo tentou lhe encher o saco. De fato, não consigo enxergar uma influência direta ou disfarçada. Nada de velho reside no livro - o velho não cabe ali.
Posso estar enganado. Afinal, como sempre digo, minha biblioteca é limitada. Ao limite de meu gosto. E do meu deleite, pessoal e intransferível. Mas não consegui perceber o que o argentino me disse um dia. Prefiro outro, que me falou categórico: “A tradição dessa política que pede o impossível é a única que pode nos justificar.” * E assim vou seguindo. Arriscando meu tempo com livros desse quilate. Ganhando território e ampliando as possibilidades. Só assim, meus chapas, a porra da vida vale a pena.
* a frase é do escritor Ricardo Piglia
Mais sobre o livro:
http://sequicosacro.blogspot.com/
http://www.youtube.com/watch?v=v-M5X8wSW2M
www.brasilnet.com.br/matriuska
SERVIÇO
Matriuska | Sidney Rocha Iluminuras
para Verbo 21
Tem o papo meio batido de que Jorge Luís Borges supunha ser o livro tão somente uma repetição do possível. Ou seja, que tudo em literatura carecia de originalidade. Que os antecessores de qualquer escritor eram quem, no fim das contas, sopravam furtivamente frases ao pé de ouvido da sua vítima, desavisada e cheia de si, crendo estar criando algo novo.
Toda e qualquer obra deve ser considerada uma primazia. Ao menos para seu autor. Para mim, ser escritor é acreditar em si próprio. Reinventar a própria vida e carregar aquela arrogância típica de quem se acha Deus. É requisito básico para manter vivos os que escrevem. Aquelas pessoas metidas em noites sem fim, fumando seus cigarros ou não - para fugir do clichê barbado-fumante-tristonho-beberrão. Crédulas e donas de uma suposta estupidez necessária e vital.
E para tais figuras pouco importa se algum autor lhes sopra frases feitas no ouvido. Fazendo-o repetir algo que já foi, certamente, escrito. Pouco deve interessar se seus livros não funcionam. Ou se são umas belas merdas de capa dura: ainda assim, deve-se seguir em frente. Teimoso, arredio e burro. Mas dotado de alguma beleza que os diferencia dos demais.
Obviamente não defendo a tese de que todos são bons escritores. Estou falando de fé. Se ao menos a crença e uma deliberada cegueira não rolar no ato da escrita – aquele momento inspirado e meio louco; um ou dois palmos acima do chão -, melhor entregar os pontos, parceiro. Nada mais justo. Para todos.
Na verdade, suponho que o Borges queria dizer o quanto apreciamos uma gama de escritores que nos atormentar o juízo quando mais precisamos criar novos mundos sem interferências. E novas formas de dizer coisas que nos sufocam. Creio que o recado era simples: somos tributários de nossos autores, das nossas influências, da nossa estante. Ponto final. E isso para quem se propõe a resenhar uma obra é ótimo. Facilita entrar numas de traçar paralelos. Simplificar tudo fazendo comparações. Dando o caminho das pedras, que algumas vezes são pontudas e/ou escorregadias. E te levam para o breu.
Seguindo tais pedras corremos risco. E a vida ganha um brilho insuspeito.
Matriuska (Iluminuras, 2009, 95p.) me veio numa sexta onde eu, cansado e feliz, não esperava nada mais que o cair da tarde para umas cervejas e outras ondas à beira rio. Seria tudo simples, mas não menos gratificante. Ou seja, na busca de recuperar minhas derradeiras utopias – pois é isso que faço quando atravesso a BR e vou baixar em uma velha terra conhecida -, já sacava que os dias teriam aquela aura meio louca; aquele vagar e aquela mesma pegada.
Mas isso é outra história.
A primeira leitura foi rápida. Afinal estava com um livro curto, na quantidade de páginas. Supus não me demorar no entendimento. Logo entenderia os preceitos, veria finais relativamente óbvios e concordaria com o Borges, ainda que isso soe pretensioso pra caralho. Mas fui pego de supetão. E tive de repetir uma, duas, três vezes o mesmo ritual de esquecer todo o resto e deixar a cabeça viajar na estranheza dos textos.
Primeiro foram os títulos. Contos – se forem – chamados “sundown”, “zero-cal”, “carefree”, “barbie” e “déjà vu” merecem ou um desprezo certeiro, ou uma atenção preciosa. Conhecendo Sidney, optei pela segunda. Então acendi meus cigarros e silenciei por dentro. Porque o barulho viria. E era inevitável.
Um novo tipo de subversão – intencional ou não, that’s the question. O fio condutor, bastante arriscado como tema numa terra onde artistas supõem entender esse abismo de sorriso fácil e loucura entre os dentes: a mulher. Nada desse papo boçal de entender o sexo oposto. Sidney preferiu o sexo avesso, ao avesso. Seus personagens quando não gritam, reivindicam sua existência de forma sorrateira. Tornam-se inesquecíveis, vão para a cama com você, te propõem uma chupada a dez paus ou te pedem para contar sobre sua mais recente viagem, enquanto confessam: “Preciso sair daqui”.
“ela virou o rosto. olhou um pouco para um vazio de séculos que mora dentro dela. não gozou. mas quando lambeu os lábios, deixou que a saliva inundasse a boca (...). ouvi um guincho de ar entrar pelo peito, um fumo, talvez outro espírito, que não o dela. (...)” (zero-cal, página 19)
“1. marisa não podia se guiar pela estrela do sol, porque cega e seca (...). pelo pára-brisa (num lugar donde até mesmo a brisa fugiu), a sua silhueta fumegava para nascer em halos do asfalto derretendo. (...)” (sundown, página 15)
Mandar a pontuação para a puta que pariu. Sacudir estereótipos e revigorar o absurdo na literatura, sem dar bola para escritores que sopram as mesmas e caquéticas frases feitas no ouvido. Disparar suas frases-flecha ao acaso, como quem mira no escuro, ou no copo colocado de sarro na cabeça da senhora Burroughs – e o velho Willian metido com a heroína de sempre e suas colagens cut up pretensamente vanguardistas, mas ininteligíveis e chatas, convenhamos. As histórias importam. Mas como elas surgem, esse tal zero absoluto tão raro, é o que me faz afirmar ser Matriuska um livro fabuloso.
E o que diferencia Sidney Rocha do resto é justamente isso: seu absurdo é musical, vivo, apesar do cortejo incessante da morte, outro tema presente e insinuado. Nada dessa onda de experimentar, meter palavras num liquidificador, sacudir e ponto final, para depois curtir o urinol do Duchamp cheio de pompa e com a cabeça saturada de merda. Sem essa de não ser compreendido e abrir o berreiro num boteco sujinho, cheio de auto-indulgência. Os contos do autor de Sofia, uma ventania para dentro (Ateliê Editorial, 2005, 208p.) nos pegam no contrapé, tornando crível – mas nem por isso sacal – todo um mundo que sai, sabe-se lá como, da cabeça desse escritor.
Uma poltrona de hotel que sonha (“egg”, página 81) e o conto chamado “nuvem” (página 45) me parecem excelentes exemplos. É o mesmo que dizer: senhores, a alma feminina está mais distante de nosso entendimento do que imaginamos; a morte, nem tanto. Eu, você e o Jorge Luís, amante dos livros, ainda que não os enxergasse, podemos estar errados, meu camarada.
Para mim, Rocha partiu do zero absoluto. Meteu-se confortavelmente no limbo das influências, dominador de suas capacidades literárias, para criar Matriuska. Um artesão, que concebe algo totalmente novo no território louco da criatividade. Dando um novo sentido ao impossível, partindo de um buraco negro, de um vazio de vozes. É como se ele tivesse esquecido tudo que leu. Ou tivesse tapado os ouvidos quando um ou outro escritor moribundo tentou lhe encher o saco. De fato, não consigo enxergar uma influência direta ou disfarçada. Nada de velho reside no livro - o velho não cabe ali.
Posso estar enganado. Afinal, como sempre digo, minha biblioteca é limitada. Ao limite de meu gosto. E do meu deleite, pessoal e intransferível. Mas não consegui perceber o que o argentino me disse um dia. Prefiro outro, que me falou categórico: “A tradição dessa política que pede o impossível é a única que pode nos justificar.” * E assim vou seguindo. Arriscando meu tempo com livros desse quilate. Ganhando território e ampliando as possibilidades. Só assim, meus chapas, a porra da vida vale a pena.
* a frase é do escritor Ricardo Piglia
Mais sobre o livro:
http://sequicosacro.blogspot.com/
http://www.youtube.com/watch?v=v-M5X8wSW2M
www.brasilnet.com.br/matriuska
SERVIÇO
Matriuska | Sidney Rocha Iluminuras
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
Por trás da violência e da morte, acha-se uma história de amor
Contos de Matriuska, de Sidney Rocha, mostram mulheres em situações extremas
por Francisco Quinteiro Pires
Para O Estado de S.Paulo
Para entender as mulheres de Matriuska há que pensar na morte e no amor. "Pois a morte ensina", diz o escritor pernambucano Sidney Rocha. "Se o universo de Matriuska fosse uma peça de teatro, seria a morte o contrarregra." Novo livro de contos de Sidney, Matriuska (Iluminuras, 96 págs., R$ 35) apresenta diferentes mulheres e seus fins diversos, por meio de uma narrativa feita de camadas que se desvendam como se o leitor retirasse as cascas de uma cebola. Para Sidney, "a forma como se morre define a vida de uma pessoa". Em Matriuska, os personagens só existem associados aos fatos de que são protagonistas ou, melhor dizendo, de que são vítimas. Os acontecimentos não se deixam revelar por inteiro: algumas brechas de luz iluminam a treva, da qual saem vivências dolorosas e extremas, como o aborto, o estupro e a pedofilia. "O horror não está nas situações, mas em como elas se banalizaram", diz. "As pessoas almoçam e jantam histórias como aquelas assistindo à televisão todos os dias, e o fazem normalmente, quase sem piscar, e isso define o nosso tempo." Segundo Rocha, todas as letras dos contos estão em minúscula "para que os leitores prestem mais atenção no que leem, no que veem." À semelhança das matriuskas, bonecas russas que escondem dentro si outras bonecas menores, a narrativa do livro de Rocha, de 43 anos, mostra nos diferentes contos situações que dialogam entre si: a leitura se torna um jogo de esconde-esconde. "Antes escrevia em busca de um estilo. Hoje só me interessa a narrativa, o miolo do que faz as coisas girarem." O ficcionista teve o cuidado de investigar onde as palavras enfraqueciam as imagens. Neste livro, sacrificou o mais que pôde a retórica e o exibicionismo do escritor para entregar-se às exigências da narração. A maioria dos títulos dos 18 contos emprega palavras inglesas ou nomes de produtos. "São referências ao universo do consumo feminino: tem a ver com esses milhões de dólares do mundo cosmético", diz. "É uma ironia com a segurança que o consumismo vende, que compramos e nunca recebemos." "Vejamos quem protege a pele de quem num dos contos." Sidney Rocha se refere a Sundown, narrativa intitulada com o nome de famoso bloqueador solar. Em vez de fonte de vida e iluminação, o sol cega e seca Marisa, revelando-se a fragilidade desta personagem. "Outro produto é um brinquedo, ele fascina o mundo das menininhas com fantasia e asseio. Pois bem: veja só o que acontece no conto." Rocha fala de Barbie, que empresta o nome de famosa boneca, inventada há 50 anos. Conta a história de Zulmira,menina de 10 anos que engravida do pai. Matriuska faz referências evidentes às mitologias grega e cristã, sobretudo no nome dos personagens. "Tudo em literatura é caso pensado: peguei carona em uma das fórmulas de James Joyce, na qual a mitologia e a banalidade têm a mesma grandeza." Também há alusões às mitologias nórdica e africana, mas o leitmotiv é a mulher. Apesar do medo e da violência, segundo Rocha, o que as mulheres querem é descobrir o prazer, mesmo havendo dor. "Estranhamente, dentro de Matriuska, as pessoas veem, de verdade, uma história de amor." Verá assim o leitor que souber, com lágrimas no rosto, descascar a cebola até o fim.
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090915/not_imp434908,0.php
por Francisco Quinteiro Pires
Para O Estado de S.Paulo
Para entender as mulheres de Matriuska há que pensar na morte e no amor. "Pois a morte ensina", diz o escritor pernambucano Sidney Rocha. "Se o universo de Matriuska fosse uma peça de teatro, seria a morte o contrarregra." Novo livro de contos de Sidney, Matriuska (Iluminuras, 96 págs., R$ 35) apresenta diferentes mulheres e seus fins diversos, por meio de uma narrativa feita de camadas que se desvendam como se o leitor retirasse as cascas de uma cebola. Para Sidney, "a forma como se morre define a vida de uma pessoa". Em Matriuska, os personagens só existem associados aos fatos de que são protagonistas ou, melhor dizendo, de que são vítimas. Os acontecimentos não se deixam revelar por inteiro: algumas brechas de luz iluminam a treva, da qual saem vivências dolorosas e extremas, como o aborto, o estupro e a pedofilia. "O horror não está nas situações, mas em como elas se banalizaram", diz. "As pessoas almoçam e jantam histórias como aquelas assistindo à televisão todos os dias, e o fazem normalmente, quase sem piscar, e isso define o nosso tempo." Segundo Rocha, todas as letras dos contos estão em minúscula "para que os leitores prestem mais atenção no que leem, no que veem." À semelhança das matriuskas, bonecas russas que escondem dentro si outras bonecas menores, a narrativa do livro de Rocha, de 43 anos, mostra nos diferentes contos situações que dialogam entre si: a leitura se torna um jogo de esconde-esconde. "Antes escrevia em busca de um estilo. Hoje só me interessa a narrativa, o miolo do que faz as coisas girarem." O ficcionista teve o cuidado de investigar onde as palavras enfraqueciam as imagens. Neste livro, sacrificou o mais que pôde a retórica e o exibicionismo do escritor para entregar-se às exigências da narração. A maioria dos títulos dos 18 contos emprega palavras inglesas ou nomes de produtos. "São referências ao universo do consumo feminino: tem a ver com esses milhões de dólares do mundo cosmético", diz. "É uma ironia com a segurança que o consumismo vende, que compramos e nunca recebemos." "Vejamos quem protege a pele de quem num dos contos." Sidney Rocha se refere a Sundown, narrativa intitulada com o nome de famoso bloqueador solar. Em vez de fonte de vida e iluminação, o sol cega e seca Marisa, revelando-se a fragilidade desta personagem. "Outro produto é um brinquedo, ele fascina o mundo das menininhas com fantasia e asseio. Pois bem: veja só o que acontece no conto." Rocha fala de Barbie, que empresta o nome de famosa boneca, inventada há 50 anos. Conta a história de Zulmira,menina de 10 anos que engravida do pai. Matriuska faz referências evidentes às mitologias grega e cristã, sobretudo no nome dos personagens. "Tudo em literatura é caso pensado: peguei carona em uma das fórmulas de James Joyce, na qual a mitologia e a banalidade têm a mesma grandeza." Também há alusões às mitologias nórdica e africana, mas o leitmotiv é a mulher. Apesar do medo e da violência, segundo Rocha, o que as mulheres querem é descobrir o prazer, mesmo havendo dor. "Estranhamente, dentro de Matriuska, as pessoas veem, de verdade, uma história de amor." Verá assim o leitor que souber, com lágrimas no rosto, descascar a cebola até o fim.
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090915/not_imp434908,0.php
Contos revelam situações extremas envolvendo mulheres
Paula Dume
colaboração para a Livraria da Folha
"Matriuska" (Iluminuras, 2009), de Sidney Rocha, reúne 18 contos, um por dentro do outro. A referência às bonecas russas no título dá esse significado ao volume. Do amor violento à pedofilia, Rocha escreve sobre as mulheres e sobre o arquétipo feminino ligado à realidade brasileira. Estupro, violência e pedofilia estão calcados em uma história de amor profundo.
"É um livro de contos que se transforma em um romance ao final, porque essa estrutura é de amor. Em cada conto, há uma história de amor se processando. Os temas são realmente muito duros, mas não são temas que as pessoas estejam absolutamente desacostumadas, porque os encontraremos sempre nas notícias de jornal", disse o autor, em entrevista à Livraria da Folha.
Na Festa Literária do Recife (FreePorto), o lançamento do volume foi literal. "Literal no sentido da palavra", explica Rocha. Havia uma competição de escritores para arremessarem seus livros na rua. O escritor lançava literalmente seu próprio livro. Rocha arremessou "Matriuska" a 10m89cm e conquistou o primeiro lugar. "O mercado editorial vai pensar na aerodinâmica", brinca.
Escrito com letras minúsculas, o volume apresenta 18 contos sobre prostituição, miséria, aborto, ignorância e traição. Em todos eles há sempre uma mulher, protagonista ou vítima. Mulher e vida se diluem em esperanças liquidadas, com seus desejos e dores.
Participando pela primeira vez da Balada Literária de São Paulo, Rocha destacou que recebeu "alguns presentes", como a comoção silenciosa do mineiro Francisco Alvim ao falar de seus poetas preferidos, como Charles Baudelaire, e o silêncio que conseguiu promover na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, no último sábado (21). Outra passagem marcante foi com João Gilberto Noll no domingo (22), "falando que sua literatura estava presa à poesia. Vi o olho do Alvim brilhar de novo e toda uma geração de literatura se encontrar naqueles olhares", destacou.
Além de escritor, Rocha edita para o Ministério da Educação (MEC) uma coleção sobre 60 educadores nacionais e internacionais, chamada "Educadores", com apoio da Unesco.
colaboração para a Livraria da Folha
"Matriuska" (Iluminuras, 2009), de Sidney Rocha, reúne 18 contos, um por dentro do outro. A referência às bonecas russas no título dá esse significado ao volume. Do amor violento à pedofilia, Rocha escreve sobre as mulheres e sobre o arquétipo feminino ligado à realidade brasileira. Estupro, violência e pedofilia estão calcados em uma história de amor profundo.
"É um livro de contos que se transforma em um romance ao final, porque essa estrutura é de amor. Em cada conto, há uma história de amor se processando. Os temas são realmente muito duros, mas não são temas que as pessoas estejam absolutamente desacostumadas, porque os encontraremos sempre nas notícias de jornal", disse o autor, em entrevista à Livraria da Folha.
Na Festa Literária do Recife (FreePorto), o lançamento do volume foi literal. "Literal no sentido da palavra", explica Rocha. Havia uma competição de escritores para arremessarem seus livros na rua. O escritor lançava literalmente seu próprio livro. Rocha arremessou "Matriuska" a 10m89cm e conquistou o primeiro lugar. "O mercado editorial vai pensar na aerodinâmica", brinca.
Escrito com letras minúsculas, o volume apresenta 18 contos sobre prostituição, miséria, aborto, ignorância e traição. Em todos eles há sempre uma mulher, protagonista ou vítima. Mulher e vida se diluem em esperanças liquidadas, com seus desejos e dores.
Participando pela primeira vez da Balada Literária de São Paulo, Rocha destacou que recebeu "alguns presentes", como a comoção silenciosa do mineiro Francisco Alvim ao falar de seus poetas preferidos, como Charles Baudelaire, e o silêncio que conseguiu promover na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, no último sábado (21). Outra passagem marcante foi com João Gilberto Noll no domingo (22), "falando que sua literatura estava presa à poesia. Vi o olho do Alvim brilhar de novo e toda uma geração de literatura se encontrar naqueles olhares", destacou.
Além de escritor, Rocha edita para o Ministério da Educação (MEC) uma coleção sobre 60 educadores nacionais e internacionais, chamada "Educadores", com apoio da Unesco.
Matriuska de Sidney Rocha ou ainda: Lupeu não sabe escrever resenhas
Lupeu Lacerda
para o Séquiço Sacro
Vamos ao que interessa: você bem que gosta de uma boneca, eu sei, é verdade. Na boa porra! Sem mentiras! Você bem que viaja na maionese quando vê uma inflável simpática. Pois muito bem, é de bonecas que estou falando sim. Das bonecas escrotinhas de Sidney Rocha, também chamadas de “matriuskas”. Sabe o que é uma matriuska? Sabe não? São aquelas bonecas russas que enfeitavam as estantes das menininhas comunistas que comiam criancinhas. As de Sydney Rocha também comem. De tudo um pouco. Marisa, a primeira, faz um boquete por dez conto. Mas você tem que entender que o sol é foda, e que cega e seca: quem vê e quem lê. Sidney tem o encantamento do estranhamento. De uma leitura que incomoda, porque real, porque parece que eu vi, porque parece que foi comigo, porque parece que a Marisa do conto ta vindo ali, de lá, de sei lá onde, com medo do sol. Que porra de literatura é essa, de Sidney Rocha, que me faz querer interferir no que leio? Fico assim: indignadoencantado. Mas no fundo eu sei, ele faz isso de propósito. A segunda boneca tem um nome que pode ser separado. Cam. Mila. Duas. Dois espíritos. Corpo nenhum. Coisa bonita de dentes brancos sem gozar. Soprando. Como um poema. Que é o que se flagra nessa porra que ele chama de conto. Conto um caralho. Deve ser um prosoema. Um contoema. Um milaema. Um dilema que Sidney coloca assim, na mesa, pra você, desavisado, pegar ligeiro e comer quente. Doeu? Leia de novo, espere esfriar. A matriuska que dá nome ao livro não tem nome. Por isso a nomeio: “semnome”, mas ela tem uma bolsa. Dessas bolsas, que mesmo pequenas, carregam a vida de uma mulher. E delimita o seu personagem. Todo escritor é escroto. Sidney não foge a regra, antes a corrobora. Ele é o lexotan que a matriuska jura que não toma. Depois ele vem assim, com outra boneca de fala arrevezada e nordestina. E severinamente diz que pariu a morte. É forte. E deus não tem nada a ver com isso. Pode até apostar. Mastruz sim. Com veneno. E sem água. Pra dar sede. E nada vem de graça, e logo surge um camburão pegando a zinha, matriuska também, que descobre os poderes de trepar apanhando. Dói. Dá nojo. Dá raiva dos filhos da puta. Mas é como te disse antes: o cara que escreve quer mesmo é isso – assuma ou não – que quem lê se incomode quando lê. Que levante a bunda da cadeira e saia pra fumar um cigarro. E ficar na dúvida se leu ou se viu na televisão. Se leu ou foi que contaram de manhã, no balcão de um barzinho suburbano. Foi? Estupraram? Comeram? Foi bom? Puta que pariu! E do Nestor, você soube? Como assim, qual Nestor? Nestor porra! O comedor. Que um dia, teve que escutar o que queria e o que não queria. Mas, de certa forma, se vingou da matriuska: ela nunca vai saber até que parte ele ouviu. Daí, pause, que ela entrou na meno pause. E eu, que não sabia picas de como era entrar em pause, agora sei. Que Sidney disse. É soprar pra dentro. É virar fumaça. Sem virar. Dá pra recitar. Em oito vozes dissonantes. Poema pop pause em dó nenhum. E Manassés tem mais é que escutar uma mentira ou duas. Quem é Manasses? Leia. Senão, fodeu. Que mais eu não conto. Depois da pause, passe no supermercado e compre um absorvente para a próxima leitura. Nada disso de comprar qualquer absorvente meu camarada, ou minha camarada. Compre um carefree para sua matriuska que gosta de números e referências. De quem ele ta falando finalmente? Da minha irmã? Da irmã dele? Da puta esquisitinha que mora no oitavo andar? Sidney é foda. É um dissecador. Um desses caras que nasceram com facas de açougueiro em lugar de dedos. Mas isso é bom porra. Traz sangue pra escrita. Sangue de mênstruo. Por isso de vida. Por isso de ler. Por isso de pegar o livro como se coisa fosse. Coisa que se mexe na mão. Como um desses pivetes recém nascidos. Que a gente quer largar no chão. Pra passar a aflição sabe? Sabe é nada. Se soubesse, saberia de esther, de nome bíblico, de dores indizíveis, e que sabe deus com que trepadas esotéricas, conseguiu parir monstros com nome e sobrenome. Saberia também, caso soubesse, dos mistérios que é morrer de causa gafanhão. Falando nisso de morte, uma das matriuskas de Sidney tem acesso direito a deus. E pede dias de saldo pra resolver pequenas coisinhas. Miudezas que cada um, se soubesse direito o que tava fazendo iria logo resolvendo. Até porque as vezes, deus ta de mau humor é pode romper o trato. Pode em vez de dar mais um dia, ou dois, ou dez, te tirar uns quinze. Por ócio talvez, por tédio quem sabe. Então, se é o caso, comece agora a ler o livro. A pagar a conta. A devolver a parada que você pediu emprestado. Quem sabe deus não ta contigo na mira? De bonecas barbie é difícil falar. Dá uma coisa na garganta. Um nó. É meio sade. Com delicadeza. É meio nelson rodrigues, pela cara de notícias populares. É todo Sidney. Assombrando os pensamentos de pais zelosos. De filhas gostosinhas. De bonequinhas cheias de pecado. De pais que queimarão para todo o sempre no inferno de sonhos que não precisam acordar. Odeio Sidney. Odeio principalmente porque não conheço jane. Porque não a vi dançando no poste do motel. Porque não pude me apresentar a ela: prazer querida, meu nome é tarzan. Agora, de uma coisa qualquer um que leia o livro de Sidney não vai poder escapar: da página 63. da página 63. 63. 63. ele saiu? Ele? Saiu? E no tempo da onça? Guadalupe fazia poeira e filhos que não ensinavam ela a ler a desgraça das placas. Gosto de guadalupe. Bateria em guadalupe. Comeria guadalupe. Mas, se sobrasse tempo, ensinaria ela a ler. Guadalupe, lendo, leria wwwoman. Fumaria um baseado feito de aspargos coloridos para entender a ficção. Pra poder entender a tristeza de diana. Fiquei pensando: seria palmer o sobrenome de diana? Seria a deusa? Uma vagaba drogada. Diana. Simplesmente. Até porque a história dela não é simples. Há que se prestar atenção aos pontos. As vírgulas. A geografia. A diana. Linda. Linda e filha da puta. Tão filha da puta quanto a matriuska cristiane. Que queria o mar de cada viagem. Que queria o mar de cada viajante. Que engolia cada viagem de cada viajante procurando o sal dos que viajam. Dos que vão. Dos que lêem pelos olhos de Sidney. Daí, pelos olhos de Sidney, vi uma poltrona feminina. Sangrando. Puta da vida. Daí, que pelos olhos de Sidney, me assustei olhando os móveis de minha casa. Os femininos. Cadeiras. Geladeira. Canetas. Será que? Será? Mas não. Os anjos não permitiriam. No fim do livro, começo de tudo, Sidney conta os passos pra matar alguém. E enche de letras uma página que é rua. E enche de letras um semáforo. E enche de vida uma são paulo que pode ser crato. Jerusalém. Juazeiro da bahia. Lá vem a mulher, com uma faca viva na bolsa. Valha-me deus. Escuto a buzina do carro. O beijo. Em preto e branco. De uma foto da guerra. O sangue do vampiro. Em preto e branco. Sydney rocha. Em preto e branco. Preto no branco. Dançando uma ciranda profana com suas matriuskas nuas. Cada uma contando sua história ao mesmo tempo. Como se possível fosse. Possível. É possível. Leia se for capaz.
para o Séquiço Sacro
Vamos ao que interessa: você bem que gosta de uma boneca, eu sei, é verdade. Na boa porra! Sem mentiras! Você bem que viaja na maionese quando vê uma inflável simpática. Pois muito bem, é de bonecas que estou falando sim. Das bonecas escrotinhas de Sidney Rocha, também chamadas de “matriuskas”. Sabe o que é uma matriuska? Sabe não? São aquelas bonecas russas que enfeitavam as estantes das menininhas comunistas que comiam criancinhas. As de Sydney Rocha também comem. De tudo um pouco. Marisa, a primeira, faz um boquete por dez conto. Mas você tem que entender que o sol é foda, e que cega e seca: quem vê e quem lê. Sidney tem o encantamento do estranhamento. De uma leitura que incomoda, porque real, porque parece que eu vi, porque parece que foi comigo, porque parece que a Marisa do conto ta vindo ali, de lá, de sei lá onde, com medo do sol. Que porra de literatura é essa, de Sidney Rocha, que me faz querer interferir no que leio? Fico assim: indignadoencantado. Mas no fundo eu sei, ele faz isso de propósito. A segunda boneca tem um nome que pode ser separado. Cam. Mila. Duas. Dois espíritos. Corpo nenhum. Coisa bonita de dentes brancos sem gozar. Soprando. Como um poema. Que é o que se flagra nessa porra que ele chama de conto. Conto um caralho. Deve ser um prosoema. Um contoema. Um milaema. Um dilema que Sidney coloca assim, na mesa, pra você, desavisado, pegar ligeiro e comer quente. Doeu? Leia de novo, espere esfriar. A matriuska que dá nome ao livro não tem nome. Por isso a nomeio: “semnome”, mas ela tem uma bolsa. Dessas bolsas, que mesmo pequenas, carregam a vida de uma mulher. E delimita o seu personagem. Todo escritor é escroto. Sidney não foge a regra, antes a corrobora. Ele é o lexotan que a matriuska jura que não toma. Depois ele vem assim, com outra boneca de fala arrevezada e nordestina. E severinamente diz que pariu a morte. É forte. E deus não tem nada a ver com isso. Pode até apostar. Mastruz sim. Com veneno. E sem água. Pra dar sede. E nada vem de graça, e logo surge um camburão pegando a zinha, matriuska também, que descobre os poderes de trepar apanhando. Dói. Dá nojo. Dá raiva dos filhos da puta. Mas é como te disse antes: o cara que escreve quer mesmo é isso – assuma ou não – que quem lê se incomode quando lê. Que levante a bunda da cadeira e saia pra fumar um cigarro. E ficar na dúvida se leu ou se viu na televisão. Se leu ou foi que contaram de manhã, no balcão de um barzinho suburbano. Foi? Estupraram? Comeram? Foi bom? Puta que pariu! E do Nestor, você soube? Como assim, qual Nestor? Nestor porra! O comedor. Que um dia, teve que escutar o que queria e o que não queria. Mas, de certa forma, se vingou da matriuska: ela nunca vai saber até que parte ele ouviu. Daí, pause, que ela entrou na meno pause. E eu, que não sabia picas de como era entrar em pause, agora sei. Que Sidney disse. É soprar pra dentro. É virar fumaça. Sem virar. Dá pra recitar. Em oito vozes dissonantes. Poema pop pause em dó nenhum. E Manassés tem mais é que escutar uma mentira ou duas. Quem é Manasses? Leia. Senão, fodeu. Que mais eu não conto. Depois da pause, passe no supermercado e compre um absorvente para a próxima leitura. Nada disso de comprar qualquer absorvente meu camarada, ou minha camarada. Compre um carefree para sua matriuska que gosta de números e referências. De quem ele ta falando finalmente? Da minha irmã? Da irmã dele? Da puta esquisitinha que mora no oitavo andar? Sidney é foda. É um dissecador. Um desses caras que nasceram com facas de açougueiro em lugar de dedos. Mas isso é bom porra. Traz sangue pra escrita. Sangue de mênstruo. Por isso de vida. Por isso de ler. Por isso de pegar o livro como se coisa fosse. Coisa que se mexe na mão. Como um desses pivetes recém nascidos. Que a gente quer largar no chão. Pra passar a aflição sabe? Sabe é nada. Se soubesse, saberia de esther, de nome bíblico, de dores indizíveis, e que sabe deus com que trepadas esotéricas, conseguiu parir monstros com nome e sobrenome. Saberia também, caso soubesse, dos mistérios que é morrer de causa gafanhão. Falando nisso de morte, uma das matriuskas de Sidney tem acesso direito a deus. E pede dias de saldo pra resolver pequenas coisinhas. Miudezas que cada um, se soubesse direito o que tava fazendo iria logo resolvendo. Até porque as vezes, deus ta de mau humor é pode romper o trato. Pode em vez de dar mais um dia, ou dois, ou dez, te tirar uns quinze. Por ócio talvez, por tédio quem sabe. Então, se é o caso, comece agora a ler o livro. A pagar a conta. A devolver a parada que você pediu emprestado. Quem sabe deus não ta contigo na mira? De bonecas barbie é difícil falar. Dá uma coisa na garganta. Um nó. É meio sade. Com delicadeza. É meio nelson rodrigues, pela cara de notícias populares. É todo Sidney. Assombrando os pensamentos de pais zelosos. De filhas gostosinhas. De bonequinhas cheias de pecado. De pais que queimarão para todo o sempre no inferno de sonhos que não precisam acordar. Odeio Sidney. Odeio principalmente porque não conheço jane. Porque não a vi dançando no poste do motel. Porque não pude me apresentar a ela: prazer querida, meu nome é tarzan. Agora, de uma coisa qualquer um que leia o livro de Sidney não vai poder escapar: da página 63. da página 63. 63. 63. ele saiu? Ele? Saiu? E no tempo da onça? Guadalupe fazia poeira e filhos que não ensinavam ela a ler a desgraça das placas. Gosto de guadalupe. Bateria em guadalupe. Comeria guadalupe. Mas, se sobrasse tempo, ensinaria ela a ler. Guadalupe, lendo, leria wwwoman. Fumaria um baseado feito de aspargos coloridos para entender a ficção. Pra poder entender a tristeza de diana. Fiquei pensando: seria palmer o sobrenome de diana? Seria a deusa? Uma vagaba drogada. Diana. Simplesmente. Até porque a história dela não é simples. Há que se prestar atenção aos pontos. As vírgulas. A geografia. A diana. Linda. Linda e filha da puta. Tão filha da puta quanto a matriuska cristiane. Que queria o mar de cada viagem. Que queria o mar de cada viajante. Que engolia cada viagem de cada viajante procurando o sal dos que viajam. Dos que vão. Dos que lêem pelos olhos de Sidney. Daí, pelos olhos de Sidney, vi uma poltrona feminina. Sangrando. Puta da vida. Daí, que pelos olhos de Sidney, me assustei olhando os móveis de minha casa. Os femininos. Cadeiras. Geladeira. Canetas. Será que? Será? Mas não. Os anjos não permitiriam. No fim do livro, começo de tudo, Sidney conta os passos pra matar alguém. E enche de letras uma página que é rua. E enche de letras um semáforo. E enche de vida uma são paulo que pode ser crato. Jerusalém. Juazeiro da bahia. Lá vem a mulher, com uma faca viva na bolsa. Valha-me deus. Escuto a buzina do carro. O beijo. Em preto e branco. De uma foto da guerra. O sangue do vampiro. Em preto e branco. Sydney rocha. Em preto e branco. Preto no branco. Dançando uma ciranda profana com suas matriuskas nuas. Cada uma contando sua história ao mesmo tempo. Como se possível fosse. Possível. É possível. Leia se for capaz.
Dores e risos
Por Maurício Melo Júnior
Jornal Rascunho
A metáfora da matriuska, a boneca russa que se renova insistentemente, é aquele tipo de mito que pode abrigar todas as possibilidades. O escritor Sidney Rocha a toma agora para falar de uma realidade onde as relações entre homens e mulheres se dão no instante em que o amor foi embora e restaram somente as feridas. E neste campo de batalha quem manda é a insensatez, o desvario. Daí a intensa oralidade dos textos.
Inicialmente, é interessante falar de um pecadilho que tem se tornado recorrente em nossa literatura e que atinge Matriuska, o livro onde Sidney Rocha retoma a larga metáfora russa, a inconseqüente mania de se buscar a agressão gramatical como acesso à vanguarda. Mais uma vez é preciso buscar apoio em Osman Lins. O escritor pernambucano ensinava da necessidade de se conhecer profundamente a gramática até para desrespeitá-la. De maneira mais risível, Luis Fernando Verissimo se define como um gigolô das palavras, que até bate nelas para que saibam quem de fato manda no texto.
Sidney renuncia a algumas maiúsculas como forma, ao que parece, de dar à narrativa um ritmo mais próximo da oralidade. Vejamos. "detestaria humilhá-lo, mas ‘O apartamento é meu, aqui pago tudo'. tirou o livro da bolsa e leu na página 63: talvez ainda estivesse lá, então continuou rodando." O trecho aponta para aquela intenção, no entanto os pontos, as aspas e outros tantos sinais mantêm a função de trazer a prosa para o ritmo comum das leituras e, aí, o esforço resulta em vazio. Talvez a solução estivesse numa maneira mais ortodoxa de escrita, no uso insistente da vírgula, como faz José Saramago.
O conto que dá título ao livro, Matriuska, se faz um bom exemplo de como o uso da vírgula favorece o ritmo da narrativa.
E por aí segue na construção de uma narrativa segura, ritmada, precisa em sua configuração psicológica.
Sem borboletas
Passado o incômodo, a maçada da vanguarda desnecessária, fica um livro de qualidades narrativas indiscutíveis, um livro que traz em si uma linguagem crua, cortante, precisa. Ou, como escreve Marcelino Freire na apresentação, "o pior sujeito é aquele que se acha. Facilmente. Aquele que coloca borboleta na gravata para escrever. E não voa. Não sai da mesmice. Eta porra!" Despido de borboletas e firulas, Sidney Rocha vai direto ao ponto, encurrala seus personagens em situações de dor e sofrimento, mas que são vivenciadas em cada esquina, no corre mesmo das horas. E foge da mesmice ao se projetar somente como narrador, fugindo de lições e conclusões mais sociológicas que literárias.
Para isso, sua preocupação básica é mesmo com os personagens, promovendo por todos os contos uma plena ausência de paisagem. Algumas cidades chegam a ser nomeadas, alguns rios, outros tantos mares, mas tudo de passagem, sem qualquer necessidade maior para o texto senão a configuração de um lugar. São espaços somente, microcosmos por onde transitam os personagens. O mecanismo impregna os contos de certa dose de universalidade. Embora sejam espaços brasileiros, o país se mostra como reflexo do mundo todo.
O fundamental é colocar os personagens em situações de tragédia, de fortes dores. E como o riso é parente da dor, constantemente as situações tornam-se risíveis. Com razão o crítico Mário Hélio fala de ironia e humor negro. "Há muitas ironias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define ‘pause', quando o que se tem mesmo é o começo do fim. Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: ela precisa de dois dias'."
Com relação aos títulos lembrados por Mário Hélio, eles vêm carregados de ironia por se contraporem ao contexto geral do conto. Os termos são modernos, mas as situações que nomeiam são arcaicas, velhas, antiquadas. Situações onde prevalecem o desprezo, o ciúme, o medo, a morte, e mais um tanto de sentimentos e acontecimentos dignos de antigos boleros. Contradições entre ontem e hoje.
A curiosidade aponta para o fato de os contos serem, em sua grande maioria, dedicados à condição do amor. Longe do amor bandido, mesmo assim aqui o amor é cruel, vive de desprezos e fatalidades, como ensina a protagonista do conto Feedback, a desesperada amante de Nestor. "mas vim pra ouvir o seu lamento outra vez, e dizer de novo que o amei como a macho nenhum nesta vida, é verdade, mas o amor tem um ranço no final, que não larga mais a gente e a gente vira limão quase, seca e bota amargor em tudo, que mulher é assim."
Neste aspecto, a dualidade entre amores e crueldades, Sidney se filia ao universo de Dalton Trevisan. Usa constantemente o diminutivo para designar pessoas e fatos, como o velho vampiro, aumentando com maestria a ironia emplastrada no absurdo dos fatos que conta.
Matriuska é um livro que renova pela linguagem, pelo ritmo preciso, pela forma que é oral, mas nunca banal, por saber trabalhar o contraditório que é a própria existência.
o autor
SIDNEY ROCHA, 43 anos, é autor de Sofia, uma ventania para dentro . Atualmente, vive entre Recife, São Paulo e Brasília.
Jornal Rascunho
A metáfora da matriuska, a boneca russa que se renova insistentemente, é aquele tipo de mito que pode abrigar todas as possibilidades. O escritor Sidney Rocha a toma agora para falar de uma realidade onde as relações entre homens e mulheres se dão no instante em que o amor foi embora e restaram somente as feridas. E neste campo de batalha quem manda é a insensatez, o desvario. Daí a intensa oralidade dos textos.
Inicialmente, é interessante falar de um pecadilho que tem se tornado recorrente em nossa literatura e que atinge Matriuska, o livro onde Sidney Rocha retoma a larga metáfora russa, a inconseqüente mania de se buscar a agressão gramatical como acesso à vanguarda. Mais uma vez é preciso buscar apoio em Osman Lins. O escritor pernambucano ensinava da necessidade de se conhecer profundamente a gramática até para desrespeitá-la. De maneira mais risível, Luis Fernando Verissimo se define como um gigolô das palavras, que até bate nelas para que saibam quem de fato manda no texto.
Sidney renuncia a algumas maiúsculas como forma, ao que parece, de dar à narrativa um ritmo mais próximo da oralidade. Vejamos. "detestaria humilhá-lo, mas ‘O apartamento é meu, aqui pago tudo'. tirou o livro da bolsa e leu na página 63: talvez ainda estivesse lá, então continuou rodando." O trecho aponta para aquela intenção, no entanto os pontos, as aspas e outros tantos sinais mantêm a função de trazer a prosa para o ritmo comum das leituras e, aí, o esforço resulta em vazio. Talvez a solução estivesse numa maneira mais ortodoxa de escrita, no uso insistente da vírgula, como faz José Saramago.
O conto que dá título ao livro, Matriuska, se faz um bom exemplo de como o uso da vírgula favorece o ritmo da narrativa.
foi naquela vez que nos vimos que me mostrou todas as suas importâncias: eram fotos na carteira, a solidão de um brinco que largara no mundo o seu par, um cartão de visita com alguns números de manaus, para casos de emergência, um pingente di noir, dois sonhos já desistindo, ir a cuba e comprar com o suor do rosto um fiat uno que fosse, um bilhete dinamarca/brasil, de viagem que fez uma amiga para nunca mais voltar praquele gringo, O filho da puta, um absorvente e duas lembranças de um aborto,...
E por aí segue na construção de uma narrativa segura, ritmada, precisa em sua configuração psicológica.
Sem borboletas
Passado o incômodo, a maçada da vanguarda desnecessária, fica um livro de qualidades narrativas indiscutíveis, um livro que traz em si uma linguagem crua, cortante, precisa. Ou, como escreve Marcelino Freire na apresentação, "o pior sujeito é aquele que se acha. Facilmente. Aquele que coloca borboleta na gravata para escrever. E não voa. Não sai da mesmice. Eta porra!" Despido de borboletas e firulas, Sidney Rocha vai direto ao ponto, encurrala seus personagens em situações de dor e sofrimento, mas que são vivenciadas em cada esquina, no corre mesmo das horas. E foge da mesmice ao se projetar somente como narrador, fugindo de lições e conclusões mais sociológicas que literárias.
Para isso, sua preocupação básica é mesmo com os personagens, promovendo por todos os contos uma plena ausência de paisagem. Algumas cidades chegam a ser nomeadas, alguns rios, outros tantos mares, mas tudo de passagem, sem qualquer necessidade maior para o texto senão a configuração de um lugar. São espaços somente, microcosmos por onde transitam os personagens. O mecanismo impregna os contos de certa dose de universalidade. Embora sejam espaços brasileiros, o país se mostra como reflexo do mundo todo.
O fundamental é colocar os personagens em situações de tragédia, de fortes dores. E como o riso é parente da dor, constantemente as situações tornam-se risíveis. Com razão o crítico Mário Hélio fala de ironia e humor negro. "Há muitas ironias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define ‘pause', quando o que se tem mesmo é o começo do fim. Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: ela precisa de dois dias'."
Com relação aos títulos lembrados por Mário Hélio, eles vêm carregados de ironia por se contraporem ao contexto geral do conto. Os termos são modernos, mas as situações que nomeiam são arcaicas, velhas, antiquadas. Situações onde prevalecem o desprezo, o ciúme, o medo, a morte, e mais um tanto de sentimentos e acontecimentos dignos de antigos boleros. Contradições entre ontem e hoje.
A curiosidade aponta para o fato de os contos serem, em sua grande maioria, dedicados à condição do amor. Longe do amor bandido, mesmo assim aqui o amor é cruel, vive de desprezos e fatalidades, como ensina a protagonista do conto Feedback, a desesperada amante de Nestor. "mas vim pra ouvir o seu lamento outra vez, e dizer de novo que o amei como a macho nenhum nesta vida, é verdade, mas o amor tem um ranço no final, que não larga mais a gente e a gente vira limão quase, seca e bota amargor em tudo, que mulher é assim."
Neste aspecto, a dualidade entre amores e crueldades, Sidney se filia ao universo de Dalton Trevisan. Usa constantemente o diminutivo para designar pessoas e fatos, como o velho vampiro, aumentando com maestria a ironia emplastrada no absurdo dos fatos que conta.
Matriuska é um livro que renova pela linguagem, pelo ritmo preciso, pela forma que é oral, mas nunca banal, por saber trabalhar o contraditório que é a própria existência.
o autor
SIDNEY ROCHA, 43 anos, é autor de Sofia, uma ventania para dentro . Atualmente, vive entre Recife, São Paulo e Brasília.
trecho • matriuska
estava com pedro porque ele lhe contava de uma viagem a são paulo, mas essa ela já sabia de cor. "Você pode me contar alguma? Qualquer uma", pediu. "Preciso viajar daqui." durante o dia, arrumava quartos de hotel. já a puniram algumas vezes porque ela some e sempre é pega no topo, olhando o mar-horizonte. "Eu fico procurando cidades, lugares, lá longe. pedro disse que são paulo não tem praia, então procuro o rio e vou indo, vou indo..."
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
A fatoração existencial de Matriuska
por Marcos Vinicius Leonel
São poucos os títulos de livros que se permitem ao mesmo tempo a secura e o êxito. Matriuska é um deles. Esse é o título do livro de contos do caririense Sidney Rocha, cuidadosamente editado pela Iluminuras. Eis um sítio arqueológico encravado bem no meio do deserto cotidiano das altas tecnologias de mercado. De dentro dos dezoito pequenos contos brotam mulheres únicas, mas uma como contigüidade da outra, e todas carnavalizadas diante do inusitado que é o des-significado da vida.
A linguagem de Sidney Rocha é absurdamente adulta, adúltera, adulterada. A descontinuidade; a fragmentação; a vertigem; o desvão; o abismo; a circularidade dos labirintos; a plenitude do asfalto; a exoneração categórica do compartilhamento dos armários de rodoviária; a solidão esquizóide de uma camisinha desencolhida pela descompressão de um saco de lixo; a inutilidade premente e sem culpa da última vulgata desapropriada pelo sagrado em rota de fuga; e muito mais, além do fetiche, é claro, fazem parte do universo literário que brota aos punhados nos contos de Matriuska.
A sintaxe particular de Sidney Rocha na realidade não é única, ela é um desdobramento arquitetônico em fluxo que atravessa também a sintaxe de uma gama de outros desconstrutores, tais como, entre tantos, Robbe-Grillet, Claude Simon e Philippe Sollers. Mas, o que de fato isso importa? Nada. Mesmo porque a abordagem temática é outra e as intenções de descarnar o enredo até o osso passam necessariamente por outras vias. Restam aí, pois, a esfinge das pequenas narrativas como texturas refinadas da grande história e a dessacralização da eloqüência temática como fonte única da grande literatura.
O tema recorrente de Matriuska é a inserção da mulher no seu cotidiano, sem afetações heróicas ou humanistas. São sonhos, desilusões, desejos e fetiches, expostos sem truques teatrais ou arcabouços monumentais. Apenas o ser e o estar, sem maquinações de laboratórios ou defesas brilhantes de teses que não servem absolutamente para nada. A ambientação é urbana. Demasiadamente urbana. O livro tem cheiro de ferro, aço, vidro, plástico e asfalto. A cor predominante é o cinza chumbo do concreto. As arestas, as janelas, o riso tímido e os ruídos, ficam por conta do imenso tráfico de humanidade que existe em cada metrópole, mesmo que a província esteja registrada na carteira de identidade.
O sotaque de Sidney Rocha é extremamente simpático e envolvente. Suas pequenas histórias são rápidas, mas são duradouras. São novas trilhas abertas nesse emaranhado literário contemporâneo. São contos pequenos na quantidade de linhas, mas são enormes em seu feitio artístico. Nem os maneirismos de vitrine, as soluções programadas dos best-sellers, os mistérios cinematográficos e nem as patéticas claquetes da chamada cultura alternativa você encontrará aqui. Também não espere a natureza ser salva, a corrupção ser extinta, o capitalismo ser desmascarado, o povo ser celebrado através do resgate das raízes culturais. Muito menos a confissão mirabolante dos sete anões no caso de estupro da panaca branca de neve.
Sugiro que a sua leitura comece exatamente pelo conto que dá título ao livro, exatamente na página 23. Quando a personagem começa retirar da bolsa todas as suas importâncias, o leitor é apresentado a um escatológico desfile de objetos e fetiches. Eis o valor de uma lembrança. Eis o ser inserido em sua significativa insignificância. É só um lampejo. É só um fôlego. A partir daí, então, você terá um universo inteiro aos seus pés, pois literalmente o seu mundo será colocado de cabeça para baixo. Esse é um livro próprio para quem tem o hábito da leitura. Mais definitivamente: é um livro impróprio para quem não largou o hábito e vive de antigas sagrações.
São poucos os títulos de livros que se permitem ao mesmo tempo a secura e o êxito. Matriuska é um deles. Esse é o título do livro de contos do caririense Sidney Rocha, cuidadosamente editado pela Iluminuras. Eis um sítio arqueológico encravado bem no meio do deserto cotidiano das altas tecnologias de mercado. De dentro dos dezoito pequenos contos brotam mulheres únicas, mas uma como contigüidade da outra, e todas carnavalizadas diante do inusitado que é o des-significado da vida.
A linguagem de Sidney Rocha é absurdamente adulta, adúltera, adulterada. A descontinuidade; a fragmentação; a vertigem; o desvão; o abismo; a circularidade dos labirintos; a plenitude do asfalto; a exoneração categórica do compartilhamento dos armários de rodoviária; a solidão esquizóide de uma camisinha desencolhida pela descompressão de um saco de lixo; a inutilidade premente e sem culpa da última vulgata desapropriada pelo sagrado em rota de fuga; e muito mais, além do fetiche, é claro, fazem parte do universo literário que brota aos punhados nos contos de Matriuska.
A sintaxe particular de Sidney Rocha na realidade não é única, ela é um desdobramento arquitetônico em fluxo que atravessa também a sintaxe de uma gama de outros desconstrutores, tais como, entre tantos, Robbe-Grillet, Claude Simon e Philippe Sollers. Mas, o que de fato isso importa? Nada. Mesmo porque a abordagem temática é outra e as intenções de descarnar o enredo até o osso passam necessariamente por outras vias. Restam aí, pois, a esfinge das pequenas narrativas como texturas refinadas da grande história e a dessacralização da eloqüência temática como fonte única da grande literatura.
O tema recorrente de Matriuska é a inserção da mulher no seu cotidiano, sem afetações heróicas ou humanistas. São sonhos, desilusões, desejos e fetiches, expostos sem truques teatrais ou arcabouços monumentais. Apenas o ser e o estar, sem maquinações de laboratórios ou defesas brilhantes de teses que não servem absolutamente para nada. A ambientação é urbana. Demasiadamente urbana. O livro tem cheiro de ferro, aço, vidro, plástico e asfalto. A cor predominante é o cinza chumbo do concreto. As arestas, as janelas, o riso tímido e os ruídos, ficam por conta do imenso tráfico de humanidade que existe em cada metrópole, mesmo que a província esteja registrada na carteira de identidade.
O sotaque de Sidney Rocha é extremamente simpático e envolvente. Suas pequenas histórias são rápidas, mas são duradouras. São novas trilhas abertas nesse emaranhado literário contemporâneo. São contos pequenos na quantidade de linhas, mas são enormes em seu feitio artístico. Nem os maneirismos de vitrine, as soluções programadas dos best-sellers, os mistérios cinematográficos e nem as patéticas claquetes da chamada cultura alternativa você encontrará aqui. Também não espere a natureza ser salva, a corrupção ser extinta, o capitalismo ser desmascarado, o povo ser celebrado através do resgate das raízes culturais. Muito menos a confissão mirabolante dos sete anões no caso de estupro da panaca branca de neve.
Sugiro que a sua leitura comece exatamente pelo conto que dá título ao livro, exatamente na página 23. Quando a personagem começa retirar da bolsa todas as suas importâncias, o leitor é apresentado a um escatológico desfile de objetos e fetiches. Eis o valor de uma lembrança. Eis o ser inserido em sua significativa insignificância. É só um lampejo. É só um fôlego. A partir daí, então, você terá um universo inteiro aos seus pés, pois literalmente o seu mundo será colocado de cabeça para baixo. Esse é um livro próprio para quem tem o hábito da leitura. Mais definitivamente: é um livro impróprio para quem não largou o hábito e vive de antigas sagrações.
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