“Nós não vamos a lugar nenhum”. É a frase. Mais que frase. Sentença. De uma personagem. Não só de uma. Destino de tudo. Do que vive, do que não nasceu e do que não virá. No plano mais geral, quase metafísico, parece terrível, no meio específico, do cotidiano, assume, no entanto, o seu sentido mais doloroso, a fragilidade do cotidiano desafortunado: o que move cada uma das figuras em ação neste livro.
Lugar nenhum define a Utopia. o Fim da utopia. Urbanos, demasiado urbanos, estes contos são retalhos, fragmentos, pedaços de vida, histórias-partidas, peças desarticuladas como as que (em)prega o destino. Estranhamente, essa desarticulação é estrutural. Tudo aqui parece (de)composição. Como uma fuga.
Na falta de melhor nome o gênero disto se chama de conto. Mas de que conto se trata? Se todas as histórias se enovelam como se não pudessem estar separadas, como se encontrassem labirintos em tudo, não apenas nos cabelos do deserto e nas selvas selvagens ásperas e fortes das cebolas.
Babuska ou Matriuska assume, claro, aqui mais do que o literal das bonecas russas, alcança o literário, o simbólico, e o simbólico é, por todos os feitos, mais do que o eterno (ou fugaz) feminino. É a maternidade, a vida mesma, como disse o poeta, sem mistificação, a vida contendo a morte, como uma estranha matriuska, e uma coisa parece não oposta, mas contida na outra, não somente na narrativa que dá título ao livro, mas nas outras, como neste exemplo de “mastruz”:
“desígnios de deus, desígnios de deus... se não morri naquele dia e hora, minha mãe, não foi por obra e graça, mas muito mais por culpa do doutor. (...) quando o fraquejo vem, porque vem, minha mãe, porque a vontade de morrer”.
E no caso de diversas personagens, não é só a vontade de morrer, mas a consecução o que se performa. Nestas histórias tristes e violentas, há mais a introversão de suicídios e abortos que a extroversão de homicídios e infanticídios.
A morte é algo familiar neste livro [Matriuska ], seja como vontade no último texto referido, seja noutro que se explicita em expressões como esta: “eu tava parindo era a morte”, e é justo dessas tensões maternidade-morte que brotam as muitas ironias de que enchem estas histórias: “mãe entende de tudo, mas pra tudo não deu”. Há muitas iro¬nias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define “pause”, quando o que se tem mesmo é o começo do fim.
Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: “ela precisava de dois dias”.
Com sutis alegorias e associações de ideias, há menções veladas à mitologia, mas recriada de modo inteligente – como fez Joyce no Ulysses, cotidianizando, vulgarizando o que outrora teria sido solene. Assim é que “o crochê: tinha terminado” evoca, evidentemente, a última das três parcas. Há outros em que ironicamente se refere a uma “Nereida” e a uma “Diana”.
Além das referências pagãs, há também de sobra as cristãs (claras ou disfarçadas), como Ruth, Guadalupe, Ana, Maggie, Cristiane, Rutilene etc.
E há histórias em que o “acerto de contas” parece dar o tom. Em “feedback” pode-se evocar o Rulfo de “Você não escuta os cães latirem?”. Só que desta vez não é a recriminação pai-filho, e sim mulher-marido.
As mulheres, na verdade, dão o tom e são o tema de todas as histórias. Os seus nomes pseudossolenes aparecem quase displicentes: Marisa, Ana, Rutilene, Cristiane, Ruth, Cleonice, Jane, Guadalupe, Zulmira, Lucinha, Yoko, Rebeca, Martinha.
Matriuska batiza o livro. Mas a russa não é a única boneca que titula histórias, há também outra que se ba¬tizou de Barbie. A matriuska é rechonchuda e “real”. A Barbie é magra e “ideal”, um dos grandes ícones das curvas e linhas do feminino nesta parte do Ocidente e neste momento da história. Diferentemente da matriuska, que é feita de acrescentamento de outras bonecas, ou dela mesma em vários tamanhos, a Barbie apenas troca de roupa. Camadas e camadas de uma que se veste de si mesma; camadas e camadas de outra que multiplica a superfície. Uma mise-en-scène, outra mise-en-abyme. Uma será sempre filha, em seus teatros para fora; outra será sempre mãe, em suas quedas para dentro.
A Barbie acabou de completar 50 anos. Nesse mesmo ano de 1959, quando por assim dizer nascia a Barbie, saiu uma versão castelhana das Crônicas marcianas de Bradbury prefaciada por Jorge Luis Borges. No seu texto ele se remete a um leitura que fizera 50 anos: “com fascinada angústia, no crepúsculo de uma casa que já não existe, Os primeiros homens na lua, de Wells”. Mal sabia Borges que dez anos depois de 1959 se cumpriria não o sonho de Wells (de 1901), mas o de Verne, que é bem anterior (Da terra à lua, de 1865, e À volta da lua, que é de 1869). Mas no texto de Borges há outra menção temporal que vale a pena referir: “Bradbury escreve 2004 e sentimos a gravitação, a fadiga, a vasta e vaga acumulação do passado”.
Bradbury escreve para o futuro e Borges o lê assim. E agora – 2009 – o futuro já é passado? A resposta à per¬gunta é mais difícil do que parece, como aliás já notou há séculos Santo Agostinho, na passagem famosa das suas Confissões. A pergunta aqui é outra — não o que é o tempo?, mas o que é o tempo destas histórias de ficção. Em que tempo vivem as Marisas e Guadalupes destes contos. Como costuma acontecer quando se constroem bem as personagens — e aqui elas não são desenvolvidas de modo convencional porque apenas existem inseparáveis dos fatos, são mesmo escravas deles — ganham uma estranha vivência, uma inquietante familiaridade.
Essas bonecas não são de plástico. São matriuskas de carne, em carne(água)-viva, e se uma delas sabe “deixar o tempo correr”, não é propria¬mente de tempo que fala, mas do sangue. Boas histórias, mais do que as guerras, costumam promover bons derramamentos de sangue, e estas ainda vêm com o bônus da “fascinada angústia” ou da fascinação angustiada que parece ser a verdadeira casa de bonecas de todo bom narrador.
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