por Marcelino Freire
Conhece Sidney Rocha? Ora. Faz tempo que ele existe. Desde que li, faz um tempo danado, a sua novela Calango-tango, eu sentia falta do texto dele. Do trinado, do ciscado. Da prece que ele faz. Do rebuliço de seus personagens. Seus parágrafos certeiros. Seu jeito de prosear. Poética, assim, medonha. Estética sem cerimônia. Sim, ele também lançou o romance Sofia. De repente, eis que ele volta, com este livro de contos curtos. E assustadores. Porque inovadores. Porque musicais, etc. e tais. E porque dificilmente existe autor como ele. Falando de certas mulheres. De certos recalques. Sem ser chato, entende? Sem querer ser o dono-da-cocada. O pior sujeito é aquele que se acha. Facilmente. Aquele que coloca borboleta na gravata para escrever. E não voa. Não sai da mesmice. Eta porra! Sidney tem o que eu aprecio em to-do coração arredio: a pulsação. A verdade. O senti-mento que está na linguagem. Nos sons que ele costura tão bem. Tão modernamente, saravá, amém!
Caro leitor, pode apostar: pegue este livro [Matriuska] na mão e veja se eu não tenho razão. Resumindo: são contos-cantos que vêm inovar e sacudir a prosa brasileira. E depois seguir por aí. Descendo e subindo a ladeira. Deixando seu sangue na gente. Assim, tão raro e para sempre!
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
fascinada angústia
por Mário Hélio
“Nós não vamos a lugar nenhum”. É a frase. Mais que frase. Sentença. De uma personagem. Não só de uma. Destino de tudo. Do que vive, do que não nasceu e do que não virá. No plano mais geral, quase metafísico, parece terrível, no meio específico, do cotidiano, assume, no entanto, o seu sentido mais doloroso, a fragilidade do cotidiano desafortunado: o que move cada uma das figuras em ação neste livro.
Lugar nenhum define a Utopia. o Fim da utopia. Urbanos, demasiado urbanos, estes contos são retalhos, fragmentos, pedaços de vida, histórias-partidas, peças desarticuladas como as que (em)prega o destino. Estranhamente, essa desarticulação é estrutural. Tudo aqui parece (de)composição. Como uma fuga.
Na falta de melhor nome o gênero disto se chama de conto. Mas de que conto se trata? Se todas as histórias se enovelam como se não pudessem estar separadas, como se encontrassem labirintos em tudo, não apenas nos cabelos do deserto e nas selvas selvagens ásperas e fortes das cebolas.
Babuska ou Matriuska assume, claro, aqui mais do que o literal das bonecas russas, alcança o literário, o simbólico, e o simbólico é, por todos os feitos, mais do que o eterno (ou fugaz) feminino. É a maternidade, a vida mesma, como disse o poeta, sem mistificação, a vida contendo a morte, como uma estranha matriuska, e uma coisa parece não oposta, mas contida na outra, não somente na narrativa que dá título ao livro, mas nas outras, como neste exemplo de “mastruz”:
E no caso de diversas personagens, não é só a vontade de morrer, mas a consecução o que se performa. Nestas histórias tristes e violentas, há mais a introversão de suicídios e abortos que a extroversão de homicídios e infanticídios.
A morte é algo familiar neste livro [Matriuska ], seja como vontade no último texto referido, seja noutro que se explicita em expressões como esta: “eu tava parindo era a morte”, e é justo dessas tensões maternidade-morte que brotam as muitas ironias de que enchem estas histórias: “mãe entende de tudo, mas pra tudo não deu”. Há muitas iro¬nias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define “pause”, quando o que se tem mesmo é o começo do fim.
Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: “ela precisava de dois dias”.
Com sutis alegorias e associações de ideias, há menções veladas à mitologia, mas recriada de modo inteligente – como fez Joyce no Ulysses, cotidianizando, vulgarizando o que outrora teria sido solene. Assim é que “o crochê: tinha terminado” evoca, evidentemente, a última das três parcas. Há outros em que ironicamente se refere a uma “Nereida” e a uma “Diana”.
Além das referências pagãs, há também de sobra as cristãs (claras ou disfarçadas), como Ruth, Guadalupe, Ana, Maggie, Cristiane, Rutilene etc.
E há histórias em que o “acerto de contas” parece dar o tom. Em “feedback” pode-se evocar o Rulfo de “Você não escuta os cães latirem?”. Só que desta vez não é a recriminação pai-filho, e sim mulher-marido.
As mulheres, na verdade, dão o tom e são o tema de todas as histórias. Os seus nomes pseudossolenes aparecem quase displicentes: Marisa, Ana, Rutilene, Cristiane, Ruth, Cleonice, Jane, Guadalupe, Zulmira, Lucinha, Yoko, Rebeca, Martinha.
Matriuska batiza o livro. Mas a russa não é a única boneca que titula histórias, há também outra que se ba¬tizou de Barbie. A matriuska é rechonchuda e “real”. A Barbie é magra e “ideal”, um dos grandes ícones das curvas e linhas do feminino nesta parte do Ocidente e neste momento da história. Diferentemente da matriuska, que é feita de acrescentamento de outras bonecas, ou dela mesma em vários tamanhos, a Barbie apenas troca de roupa. Camadas e camadas de uma que se veste de si mesma; camadas e camadas de outra que multiplica a superfície. Uma mise-en-scène, outra mise-en-abyme. Uma será sempre filha, em seus teatros para fora; outra será sempre mãe, em suas quedas para dentro.
A Barbie acabou de completar 50 anos. Nesse mesmo ano de 1959, quando por assim dizer nascia a Barbie, saiu uma versão castelhana das Crônicas marcianas de Bradbury prefaciada por Jorge Luis Borges. No seu texto ele se remete a um leitura que fizera 50 anos: “com fascinada angústia, no crepúsculo de uma casa que já não existe, Os primeiros homens na lua, de Wells”. Mal sabia Borges que dez anos depois de 1959 se cumpriria não o sonho de Wells (de 1901), mas o de Verne, que é bem anterior (Da terra à lua, de 1865, e À volta da lua, que é de 1869). Mas no texto de Borges há outra menção temporal que vale a pena referir: “Bradbury escreve 2004 e sentimos a gravitação, a fadiga, a vasta e vaga acumulação do passado”.
Bradbury escreve para o futuro e Borges o lê assim. E agora – 2009 – o futuro já é passado? A resposta à per¬gunta é mais difícil do que parece, como aliás já notou há séculos Santo Agostinho, na passagem famosa das suas Confissões. A pergunta aqui é outra — não o que é o tempo?, mas o que é o tempo destas histórias de ficção. Em que tempo vivem as Marisas e Guadalupes destes contos. Como costuma acontecer quando se constroem bem as personagens — e aqui elas não são desenvolvidas de modo convencional porque apenas existem inseparáveis dos fatos, são mesmo escravas deles — ganham uma estranha vivência, uma inquietante familiaridade.
Essas bonecas não são de plástico. São matriuskas de carne, em carne(água)-viva, e se uma delas sabe “deixar o tempo correr”, não é propria¬mente de tempo que fala, mas do sangue. Boas histórias, mais do que as guerras, costumam promover bons derramamentos de sangue, e estas ainda vêm com o bônus da “fascinada angústia” ou da fascinação angustiada que parece ser a verdadeira casa de bonecas de todo bom narrador.
“Nós não vamos a lugar nenhum”. É a frase. Mais que frase. Sentença. De uma personagem. Não só de uma. Destino de tudo. Do que vive, do que não nasceu e do que não virá. No plano mais geral, quase metafísico, parece terrível, no meio específico, do cotidiano, assume, no entanto, o seu sentido mais doloroso, a fragilidade do cotidiano desafortunado: o que move cada uma das figuras em ação neste livro.
Lugar nenhum define a Utopia. o Fim da utopia. Urbanos, demasiado urbanos, estes contos são retalhos, fragmentos, pedaços de vida, histórias-partidas, peças desarticuladas como as que (em)prega o destino. Estranhamente, essa desarticulação é estrutural. Tudo aqui parece (de)composição. Como uma fuga.
Na falta de melhor nome o gênero disto se chama de conto. Mas de que conto se trata? Se todas as histórias se enovelam como se não pudessem estar separadas, como se encontrassem labirintos em tudo, não apenas nos cabelos do deserto e nas selvas selvagens ásperas e fortes das cebolas.
Babuska ou Matriuska assume, claro, aqui mais do que o literal das bonecas russas, alcança o literário, o simbólico, e o simbólico é, por todos os feitos, mais do que o eterno (ou fugaz) feminino. É a maternidade, a vida mesma, como disse o poeta, sem mistificação, a vida contendo a morte, como uma estranha matriuska, e uma coisa parece não oposta, mas contida na outra, não somente na narrativa que dá título ao livro, mas nas outras, como neste exemplo de “mastruz”:
“desígnios de deus, desígnios de deus... se não morri naquele dia e hora, minha mãe, não foi por obra e graça, mas muito mais por culpa do doutor. (...) quando o fraquejo vem, porque vem, minha mãe, porque a vontade de morrer”.
E no caso de diversas personagens, não é só a vontade de morrer, mas a consecução o que se performa. Nestas histórias tristes e violentas, há mais a introversão de suicídios e abortos que a extroversão de homicídios e infanticídios.
A morte é algo familiar neste livro [Matriuska ], seja como vontade no último texto referido, seja noutro que se explicita em expressões como esta: “eu tava parindo era a morte”, e é justo dessas tensões maternidade-morte que brotam as muitas ironias de que enchem estas histórias: “mãe entende de tudo, mas pra tudo não deu”. Há muitas iro¬nias verbais, e podem ser vigiadas já a partir dos títulos, mesmo nos inexatos, como aquele que se refere à menopausa e se define “pause”, quando o que se tem mesmo é o começo do fim.
Noutra, é o humor negro, amargo, que emoldura o desejo de uma personagem como nova Medéia: não de um dia como a amante de Jasão: “ela precisava de dois dias”.
Com sutis alegorias e associações de ideias, há menções veladas à mitologia, mas recriada de modo inteligente – como fez Joyce no Ulysses, cotidianizando, vulgarizando o que outrora teria sido solene. Assim é que “o crochê: tinha terminado” evoca, evidentemente, a última das três parcas. Há outros em que ironicamente se refere a uma “Nereida” e a uma “Diana”.
Além das referências pagãs, há também de sobra as cristãs (claras ou disfarçadas), como Ruth, Guadalupe, Ana, Maggie, Cristiane, Rutilene etc.
E há histórias em que o “acerto de contas” parece dar o tom. Em “feedback” pode-se evocar o Rulfo de “Você não escuta os cães latirem?”. Só que desta vez não é a recriminação pai-filho, e sim mulher-marido.
As mulheres, na verdade, dão o tom e são o tema de todas as histórias. Os seus nomes pseudossolenes aparecem quase displicentes: Marisa, Ana, Rutilene, Cristiane, Ruth, Cleonice, Jane, Guadalupe, Zulmira, Lucinha, Yoko, Rebeca, Martinha.
Matriuska batiza o livro. Mas a russa não é a única boneca que titula histórias, há também outra que se ba¬tizou de Barbie. A matriuska é rechonchuda e “real”. A Barbie é magra e “ideal”, um dos grandes ícones das curvas e linhas do feminino nesta parte do Ocidente e neste momento da história. Diferentemente da matriuska, que é feita de acrescentamento de outras bonecas, ou dela mesma em vários tamanhos, a Barbie apenas troca de roupa. Camadas e camadas de uma que se veste de si mesma; camadas e camadas de outra que multiplica a superfície. Uma mise-en-scène, outra mise-en-abyme. Uma será sempre filha, em seus teatros para fora; outra será sempre mãe, em suas quedas para dentro.
A Barbie acabou de completar 50 anos. Nesse mesmo ano de 1959, quando por assim dizer nascia a Barbie, saiu uma versão castelhana das Crônicas marcianas de Bradbury prefaciada por Jorge Luis Borges. No seu texto ele se remete a um leitura que fizera 50 anos: “com fascinada angústia, no crepúsculo de uma casa que já não existe, Os primeiros homens na lua, de Wells”. Mal sabia Borges que dez anos depois de 1959 se cumpriria não o sonho de Wells (de 1901), mas o de Verne, que é bem anterior (Da terra à lua, de 1865, e À volta da lua, que é de 1869). Mas no texto de Borges há outra menção temporal que vale a pena referir: “Bradbury escreve 2004 e sentimos a gravitação, a fadiga, a vasta e vaga acumulação do passado”.
Bradbury escreve para o futuro e Borges o lê assim. E agora – 2009 – o futuro já é passado? A resposta à per¬gunta é mais difícil do que parece, como aliás já notou há séculos Santo Agostinho, na passagem famosa das suas Confissões. A pergunta aqui é outra — não o que é o tempo?, mas o que é o tempo destas histórias de ficção. Em que tempo vivem as Marisas e Guadalupes destes contos. Como costuma acontecer quando se constroem bem as personagens — e aqui elas não são desenvolvidas de modo convencional porque apenas existem inseparáveis dos fatos, são mesmo escravas deles — ganham uma estranha vivência, uma inquietante familiaridade.
Essas bonecas não são de plástico. São matriuskas de carne, em carne(água)-viva, e se uma delas sabe “deixar o tempo correr”, não é propria¬mente de tempo que fala, mas do sangue. Boas histórias, mais do que as guerras, costumam promover bons derramamentos de sangue, e estas ainda vêm com o bônus da “fascinada angústia” ou da fascinação angustiada que parece ser a verdadeira casa de bonecas de todo bom narrador.
As frases-flecha de Sidney Rocha
por Gustavo Rios
para Verbo 21
Tem o papo meio batido de que Jorge Luís Borges supunha ser o livro tão somente uma repetição do possível. Ou seja, que tudo em literatura carecia de originalidade. Que os antecessores de qualquer escritor eram quem, no fim das contas, sopravam furtivamente frases ao pé de ouvido da sua vítima, desavisada e cheia de si, crendo estar criando algo novo.
Toda e qualquer obra deve ser considerada uma primazia. Ao menos para seu autor. Para mim, ser escritor é acreditar em si próprio. Reinventar a própria vida e carregar aquela arrogância típica de quem se acha Deus. É requisito básico para manter vivos os que escrevem. Aquelas pessoas metidas em noites sem fim, fumando seus cigarros ou não - para fugir do clichê barbado-fumante-tristonho-beberrão. Crédulas e donas de uma suposta estupidez necessária e vital.
E para tais figuras pouco importa se algum autor lhes sopra frases feitas no ouvido. Fazendo-o repetir algo que já foi, certamente, escrito. Pouco deve interessar se seus livros não funcionam. Ou se são umas belas merdas de capa dura: ainda assim, deve-se seguir em frente. Teimoso, arredio e burro. Mas dotado de alguma beleza que os diferencia dos demais.
Obviamente não defendo a tese de que todos são bons escritores. Estou falando de fé. Se ao menos a crença e uma deliberada cegueira não rolar no ato da escrita – aquele momento inspirado e meio louco; um ou dois palmos acima do chão -, melhor entregar os pontos, parceiro. Nada mais justo. Para todos.
Na verdade, suponho que o Borges queria dizer o quanto apreciamos uma gama de escritores que nos atormentar o juízo quando mais precisamos criar novos mundos sem interferências. E novas formas de dizer coisas que nos sufocam. Creio que o recado era simples: somos tributários de nossos autores, das nossas influências, da nossa estante. Ponto final. E isso para quem se propõe a resenhar uma obra é ótimo. Facilita entrar numas de traçar paralelos. Simplificar tudo fazendo comparações. Dando o caminho das pedras, que algumas vezes são pontudas e/ou escorregadias. E te levam para o breu.
Seguindo tais pedras corremos risco. E a vida ganha um brilho insuspeito.
Matriuska (Iluminuras, 2009, 95p.) me veio numa sexta onde eu, cansado e feliz, não esperava nada mais que o cair da tarde para umas cervejas e outras ondas à beira rio. Seria tudo simples, mas não menos gratificante. Ou seja, na busca de recuperar minhas derradeiras utopias – pois é isso que faço quando atravesso a BR e vou baixar em uma velha terra conhecida -, já sacava que os dias teriam aquela aura meio louca; aquele vagar e aquela mesma pegada.
Mas isso é outra história.
A primeira leitura foi rápida. Afinal estava com um livro curto, na quantidade de páginas. Supus não me demorar no entendimento. Logo entenderia os preceitos, veria finais relativamente óbvios e concordaria com o Borges, ainda que isso soe pretensioso pra caralho. Mas fui pego de supetão. E tive de repetir uma, duas, três vezes o mesmo ritual de esquecer todo o resto e deixar a cabeça viajar na estranheza dos textos.
Primeiro foram os títulos. Contos – se forem – chamados “sundown”, “zero-cal”, “carefree”, “barbie” e “déjà vu” merecem ou um desprezo certeiro, ou uma atenção preciosa. Conhecendo Sidney, optei pela segunda. Então acendi meus cigarros e silenciei por dentro. Porque o barulho viria. E era inevitável.
Um novo tipo de subversão – intencional ou não, that’s the question. O fio condutor, bastante arriscado como tema numa terra onde artistas supõem entender esse abismo de sorriso fácil e loucura entre os dentes: a mulher. Nada desse papo boçal de entender o sexo oposto. Sidney preferiu o sexo avesso, ao avesso. Seus personagens quando não gritam, reivindicam sua existência de forma sorrateira. Tornam-se inesquecíveis, vão para a cama com você, te propõem uma chupada a dez paus ou te pedem para contar sobre sua mais recente viagem, enquanto confessam: “Preciso sair daqui”.
Mandar a pontuação para a puta que pariu. Sacudir estereótipos e revigorar o absurdo na literatura, sem dar bola para escritores que sopram as mesmas e caquéticas frases feitas no ouvido. Disparar suas frases-flecha ao acaso, como quem mira no escuro, ou no copo colocado de sarro na cabeça da senhora Burroughs – e o velho Willian metido com a heroína de sempre e suas colagens cut up pretensamente vanguardistas, mas ininteligíveis e chatas, convenhamos. As histórias importam. Mas como elas surgem, esse tal zero absoluto tão raro, é o que me faz afirmar ser Matriuska um livro fabuloso.
E o que diferencia Sidney Rocha do resto é justamente isso: seu absurdo é musical, vivo, apesar do cortejo incessante da morte, outro tema presente e insinuado. Nada dessa onda de experimentar, meter palavras num liquidificador, sacudir e ponto final, para depois curtir o urinol do Duchamp cheio de pompa e com a cabeça saturada de merda. Sem essa de não ser compreendido e abrir o berreiro num boteco sujinho, cheio de auto-indulgência. Os contos do autor de Sofia, uma ventania para dentro (Ateliê Editorial, 2005, 208p.) nos pegam no contrapé, tornando crível – mas nem por isso sacal – todo um mundo que sai, sabe-se lá como, da cabeça desse escritor.
Uma poltrona de hotel que sonha (“egg”, página 81) e o conto chamado “nuvem” (página 45) me parecem excelentes exemplos. É o mesmo que dizer: senhores, a alma feminina está mais distante de nosso entendimento do que imaginamos; a morte, nem tanto. Eu, você e o Jorge Luís, amante dos livros, ainda que não os enxergasse, podemos estar errados, meu camarada.
Para mim, Rocha partiu do zero absoluto. Meteu-se confortavelmente no limbo das influências, dominador de suas capacidades literárias, para criar Matriuska. Um artesão, que concebe algo totalmente novo no território louco da criatividade. Dando um novo sentido ao impossível, partindo de um buraco negro, de um vazio de vozes. É como se ele tivesse esquecido tudo que leu. Ou tivesse tapado os ouvidos quando um ou outro escritor moribundo tentou lhe encher o saco. De fato, não consigo enxergar uma influência direta ou disfarçada. Nada de velho reside no livro - o velho não cabe ali.
Posso estar enganado. Afinal, como sempre digo, minha biblioteca é limitada. Ao limite de meu gosto. E do meu deleite, pessoal e intransferível. Mas não consegui perceber o que o argentino me disse um dia. Prefiro outro, que me falou categórico: “A tradição dessa política que pede o impossível é a única que pode nos justificar.” * E assim vou seguindo. Arriscando meu tempo com livros desse quilate. Ganhando território e ampliando as possibilidades. Só assim, meus chapas, a porra da vida vale a pena.
* a frase é do escritor Ricardo Piglia
Mais sobre o livro:
http://sequicosacro.blogspot.com/
http://www.youtube.com/watch?v=v-M5X8wSW2M
www.brasilnet.com.br/matriuska
SERVIÇO
Matriuska | Sidney Rocha Iluminuras
para Verbo 21
Tem o papo meio batido de que Jorge Luís Borges supunha ser o livro tão somente uma repetição do possível. Ou seja, que tudo em literatura carecia de originalidade. Que os antecessores de qualquer escritor eram quem, no fim das contas, sopravam furtivamente frases ao pé de ouvido da sua vítima, desavisada e cheia de si, crendo estar criando algo novo.
Toda e qualquer obra deve ser considerada uma primazia. Ao menos para seu autor. Para mim, ser escritor é acreditar em si próprio. Reinventar a própria vida e carregar aquela arrogância típica de quem se acha Deus. É requisito básico para manter vivos os que escrevem. Aquelas pessoas metidas em noites sem fim, fumando seus cigarros ou não - para fugir do clichê barbado-fumante-tristonho-beberrão. Crédulas e donas de uma suposta estupidez necessária e vital.
E para tais figuras pouco importa se algum autor lhes sopra frases feitas no ouvido. Fazendo-o repetir algo que já foi, certamente, escrito. Pouco deve interessar se seus livros não funcionam. Ou se são umas belas merdas de capa dura: ainda assim, deve-se seguir em frente. Teimoso, arredio e burro. Mas dotado de alguma beleza que os diferencia dos demais.
Obviamente não defendo a tese de que todos são bons escritores. Estou falando de fé. Se ao menos a crença e uma deliberada cegueira não rolar no ato da escrita – aquele momento inspirado e meio louco; um ou dois palmos acima do chão -, melhor entregar os pontos, parceiro. Nada mais justo. Para todos.
Na verdade, suponho que o Borges queria dizer o quanto apreciamos uma gama de escritores que nos atormentar o juízo quando mais precisamos criar novos mundos sem interferências. E novas formas de dizer coisas que nos sufocam. Creio que o recado era simples: somos tributários de nossos autores, das nossas influências, da nossa estante. Ponto final. E isso para quem se propõe a resenhar uma obra é ótimo. Facilita entrar numas de traçar paralelos. Simplificar tudo fazendo comparações. Dando o caminho das pedras, que algumas vezes são pontudas e/ou escorregadias. E te levam para o breu.
Seguindo tais pedras corremos risco. E a vida ganha um brilho insuspeito.
Matriuska (Iluminuras, 2009, 95p.) me veio numa sexta onde eu, cansado e feliz, não esperava nada mais que o cair da tarde para umas cervejas e outras ondas à beira rio. Seria tudo simples, mas não menos gratificante. Ou seja, na busca de recuperar minhas derradeiras utopias – pois é isso que faço quando atravesso a BR e vou baixar em uma velha terra conhecida -, já sacava que os dias teriam aquela aura meio louca; aquele vagar e aquela mesma pegada.
Mas isso é outra história.
A primeira leitura foi rápida. Afinal estava com um livro curto, na quantidade de páginas. Supus não me demorar no entendimento. Logo entenderia os preceitos, veria finais relativamente óbvios e concordaria com o Borges, ainda que isso soe pretensioso pra caralho. Mas fui pego de supetão. E tive de repetir uma, duas, três vezes o mesmo ritual de esquecer todo o resto e deixar a cabeça viajar na estranheza dos textos.
Primeiro foram os títulos. Contos – se forem – chamados “sundown”, “zero-cal”, “carefree”, “barbie” e “déjà vu” merecem ou um desprezo certeiro, ou uma atenção preciosa. Conhecendo Sidney, optei pela segunda. Então acendi meus cigarros e silenciei por dentro. Porque o barulho viria. E era inevitável.
Um novo tipo de subversão – intencional ou não, that’s the question. O fio condutor, bastante arriscado como tema numa terra onde artistas supõem entender esse abismo de sorriso fácil e loucura entre os dentes: a mulher. Nada desse papo boçal de entender o sexo oposto. Sidney preferiu o sexo avesso, ao avesso. Seus personagens quando não gritam, reivindicam sua existência de forma sorrateira. Tornam-se inesquecíveis, vão para a cama com você, te propõem uma chupada a dez paus ou te pedem para contar sobre sua mais recente viagem, enquanto confessam: “Preciso sair daqui”.
“ela virou o rosto. olhou um pouco para um vazio de séculos que mora dentro dela. não gozou. mas quando lambeu os lábios, deixou que a saliva inundasse a boca (...). ouvi um guincho de ar entrar pelo peito, um fumo, talvez outro espírito, que não o dela. (...)” (zero-cal, página 19)
“1. marisa não podia se guiar pela estrela do sol, porque cega e seca (...). pelo pára-brisa (num lugar donde até mesmo a brisa fugiu), a sua silhueta fumegava para nascer em halos do asfalto derretendo. (...)” (sundown, página 15)
Mandar a pontuação para a puta que pariu. Sacudir estereótipos e revigorar o absurdo na literatura, sem dar bola para escritores que sopram as mesmas e caquéticas frases feitas no ouvido. Disparar suas frases-flecha ao acaso, como quem mira no escuro, ou no copo colocado de sarro na cabeça da senhora Burroughs – e o velho Willian metido com a heroína de sempre e suas colagens cut up pretensamente vanguardistas, mas ininteligíveis e chatas, convenhamos. As histórias importam. Mas como elas surgem, esse tal zero absoluto tão raro, é o que me faz afirmar ser Matriuska um livro fabuloso.
E o que diferencia Sidney Rocha do resto é justamente isso: seu absurdo é musical, vivo, apesar do cortejo incessante da morte, outro tema presente e insinuado. Nada dessa onda de experimentar, meter palavras num liquidificador, sacudir e ponto final, para depois curtir o urinol do Duchamp cheio de pompa e com a cabeça saturada de merda. Sem essa de não ser compreendido e abrir o berreiro num boteco sujinho, cheio de auto-indulgência. Os contos do autor de Sofia, uma ventania para dentro (Ateliê Editorial, 2005, 208p.) nos pegam no contrapé, tornando crível – mas nem por isso sacal – todo um mundo que sai, sabe-se lá como, da cabeça desse escritor.
Uma poltrona de hotel que sonha (“egg”, página 81) e o conto chamado “nuvem” (página 45) me parecem excelentes exemplos. É o mesmo que dizer: senhores, a alma feminina está mais distante de nosso entendimento do que imaginamos; a morte, nem tanto. Eu, você e o Jorge Luís, amante dos livros, ainda que não os enxergasse, podemos estar errados, meu camarada.
Para mim, Rocha partiu do zero absoluto. Meteu-se confortavelmente no limbo das influências, dominador de suas capacidades literárias, para criar Matriuska. Um artesão, que concebe algo totalmente novo no território louco da criatividade. Dando um novo sentido ao impossível, partindo de um buraco negro, de um vazio de vozes. É como se ele tivesse esquecido tudo que leu. Ou tivesse tapado os ouvidos quando um ou outro escritor moribundo tentou lhe encher o saco. De fato, não consigo enxergar uma influência direta ou disfarçada. Nada de velho reside no livro - o velho não cabe ali.
Posso estar enganado. Afinal, como sempre digo, minha biblioteca é limitada. Ao limite de meu gosto. E do meu deleite, pessoal e intransferível. Mas não consegui perceber o que o argentino me disse um dia. Prefiro outro, que me falou categórico: “A tradição dessa política que pede o impossível é a única que pode nos justificar.” * E assim vou seguindo. Arriscando meu tempo com livros desse quilate. Ganhando território e ampliando as possibilidades. Só assim, meus chapas, a porra da vida vale a pena.
* a frase é do escritor Ricardo Piglia
Mais sobre o livro:
http://sequicosacro.blogspot.com/
http://www.youtube.com/watch?v=v-M5X8wSW2M
www.brasilnet.com.br/matriuska
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