quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Sussurros poéticos da violência

por Thiago Corrêa
Para o Vacatussa
Estampada quase todos os dias nas manchetes dos jornais, a tragédia social do país também tem feito as prensas do mercado editorial rodar. Cenas de violência se tornaram tão explícitas na literatura nacional quanto os problemas encontrados nas esquinas de nossas metrópoles. Com base nesse foco de interesse, pode-se encontrar pelo menos duas vertentes literárias. De um lado autores trabalhando a violência por um viés de denúncia social, trazendo descrições detalhadas de ambientes miseráveis e caracterizações de personagens sufocados pela falta perspectiva enfrentando situações limite. Dois expoentes dessa linha são o romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, e o conto Feliz ano novo, de Rubem Fonseca.
Sem tanto alarde ou vontade de evidenciar essa urgência pela denúncia, mas trabalhando com a mesma temática, aparecem como expoentes da segunda vertente os autores Marcelino Freire e agora Sidney Rocha, que publica seu segundo livro Matriuska. A linguagem deixa de ser uma lente de aumento, revelando com sordidez os detalhes do nosso desequilíbrio social, para assumir uma forma opaca, que prende o olhar na linguagem e não no fato em si. O foco fica na oralidade do texto, no ritmo, nas rimas e maneirismos estéticos.
Mas, apesar de não entrar de sola no rosto do leitor, cria-se uma sensação de descompasso, que chega a ser tão pertubadora quanto. O texto de Sidney Rocha parece nos atormentar com um sussurro de velho indecente no ouvido de uma criança. A angústia desse escritor cearense – que hoje vive entre Recife, São Paulo e Brasília – vai se revelando pouco a pouco, em pílulas de até quatro páginas, na medida em que os leitores vão descobrindo a pequenez do ser humano. Tudo acontece como numa brincadeira com as bonecas russas matriuskas, somos envolvidos pela escrita engenhosa do autor enquanto vamos encontrando nossos semelhantes, cada vez menores, dentro das entranhas em forma de palavras.
Nos 18 contos de Matriuska, gestos de carinho se revelam lâminas, pó de vidro que engolimos e nos fazem sangrar por dentro. O dilaceramento vem disfarçado, na forma da ingenuidade embutida na história de uma jovem do interior em busca da família na cidade, no sonho de uma funcionária de hotel querendo conhecer o mundo, na devoção a Deus e nas lembranças de uma relação amorosa. É apenas um detalhe, causa, consequência, desfecho. O que mais vale na prosa de Sidney Rocha não é o que vai acontecer, mas como ele ocorre.
Matriuska é um livro de pequenos contos interligados pelo rebuscamento das raízes no mal da natureza humana. São histórias construídas como relatos despretenciosos, jogados como conversas de bar. Narrados em primeira pessoa, os contos ganham um tom confessional que permite a aproximação do leitor e resulta em grafismos para desvirtuar a linguagem. Nem o uso de termos da cultura de massa consegue pasteurizar a narrativa de Sidney Rocha, que se torna ainda mais deslocada quando anunciadas por títulos como sundown, carefree e twitter.
O mesmo efeito ocorre com a transformação do idioma pela oralidade internética do autor, permitindo-lhe a junção de palavras como vocábulos e o descaso com as solenidades gramaticais nas referências em maiúsculo a nomes próprios e após pontos. Uma carcterística que nos faz lembrar de Marcelino Freire, que assina o préfácio e também compactua com o interesse pela tragédia e a lapidação de personagens brutos em rimas.
Thiago Corrêa
lido em Set. de 2009
escrito em 19.09.2009
reescrito em 19.10.2009

: : TRECHO : :


“aí eles rasgaram o que puderam. enfiaram-se em mim, um após um, outro após outro, e foi nessa hora que detestei para sempre essas coisas do organismo, e que não entendi a reação das minhas carnes, e repudiei para sempre o meu corpo, e deicidi que com ele não viveria mais: As minhas glândulas piraram, meu amigo, entraram em curto sim, senhor, porque o que eles viram, no meio do nevoeiro, no absurdo daquilo tudo, foi o meu gozo tomando conta do recinto, uma, duas.. dez vezes, eu já disse dez vezes,” (p. 32).

: : FICHA TÉCNICA : :
Matriuska | Sidney Rocha | Iluminuras | 1a. edição, 2009 | 96 páginas

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Livro de contos esmiúça arquétipos femininos

por Paula Dume,
para a Folha de S.Paulo

Mulheres dentro de mulheres tecidas por outras mulheres e descritas por um homem. O livro de contos "Matriuska" (Iluminuras, 2009), de Sidney Rocha, faz referência às bonecas russas no título e dá esse significado ao volume. São 18 contos sobre prostituição, miséria, aborto, ignorância e traição. A mulher é retratada de todos os modos, do violento ao exaltado, do arquétipo ao segmentado. A realidade brasileira, das violentas manchetes de jornal, está diluída na escrita de Rocha.
A estrutura dos contos — escritos em letras minúsculas — permite que o autor lhe conceda doses de romance. As microhistórias se entrelaçam, o amor se processa e a dureza da vida afunila os sentimentos e vivências das personagens para com os nossos dilemas mundanos. O escritor Marcelino Freire assina o prefácio "gravatas e borboletas". "Sidney tem o que eu aprecio em todo coração arredio: a pulsação. A verdade. O sentimento que está na linguagem. Nos sons que ele costura tão bem", disse.
No conto abaixo, extraído de "Matriuska", a ianomani Guadalupe é espancada e uma onça a salva. Começa a viver outra realidade, como Cleonice, mas há pegadas do animal dentro de si. De uma mulher que se renova e se torna outras, uma boneca dentro de bonecas, a protagonista despenca sob o mundo.

domingo, 11 de outubro de 2009

Uma lida no Matriuska, do Sidney Rocha


por Fillipe “Butcher” Jardim
Um homem de poucas posses raramente pode se dar ao luxo das compras ao bel prazer. Eu, liso de marca menor, que é mais barato, posso fazer essas coisas luxentas de vez em quando, a cada dez anos, com um peso filha da puta na consciência. E lá estava eu, no (argh) shopping (argh), numa, isso é verdade, (argh) livraria (argh), de bobeira, com uns trocados a mais. Até o Leite Derramado eu folheei, pela bonança dos deuses. E, confesso, senti vontade de comprar, mas esse desejo não resistiu aos volumes do Raymond Chandler que encontrei. A Simples Arte de Matar, volumes 1 e 2. L& PMpocket, caros, porém baratos, vai entender. Comprados, em processo de leitura.
Mas isso não importa.
O que importa na verdade é que, caçando outros livros ao léu, acho aquele livrinho todo cheio de frufrus que há um tempo danado eu queria ler: Matriuska, do Sidney Rocha. Graças a Motaro, 28 facadas reais no bolsinho, pelo menos um preço menor do que as 35 da época do lançamento. Cheguei em casa umas 5 horas da tarde, daria aula às 19:00. Taí o tempo que li o bicho todo. E é sobre ele esta lenga-lenga.
Primeira coisa a dizer: a capa, o design, toda a frescurada. O livro é lindo, puta merda, lindo mesmo. Foda isso. Um livro bonito tira a atenção, pelo menos a desse porco aqui, acostumado com os engordurados Mario Puzo de dois reais do sebo. Evoé. Mas, entre olhadas e outras nas capas, a molona e a dura, com o perdão da sacanagem, li o livro todo.
Segunda coisa a dizer: que porra foi aquilo?
Foram contos, isso eu sei. Mas é tudo tão curto, tão inusitado, que é quase inevitável não suspirar um “que viagem” de quando em vez.
Uma porrada de coisas a dizer:
A subversão do uso de letras maiúsculas, tanta gente usa isso na internet hoje em dia. Está nele. Acho isso um ponto positivo, mas eu me recuso a usar.  Porque sou chato. Mas que é um grande recurso, isto é, mostra a atualidade da escrita do Sidney. Coloca a importância das coisas em seus devidos lugares.
A ligação entre um conto e outro, outro ponto. Acho massa, meu livreto em andamento tem isso.
A sordidez das estórias. Ah, seu monstro, Fillipe “Butcher” Jardim, como não gostar da temática?
É isso aí, um livro, na segurança da palavra, louco. E não há por que não escrever loucamente sobre ele.
Agora os contos em si. O melhor, ou pior, ou sei lá, é que todos seguem a linha joyceana (mai fresco) de fluxo de pensamento, o que confere dinamismo, mas é um tanto frustrante para um livro de menos de 100 páginas (não conto as pintadas de vermelho nem fodendo). Fica aquele gosto de, “acabou? Que pena…”
E isso é muito Dalton Trevisan, aí chegamos ao ponto.
O sexo, veja o conto “barbie”, veja o conto “mastruz”, veja o conto "onça". Estupro, aborto, abuso sexual, à Trevisan. As pausas à Trevisan, o ritmo, como narrativas curtíssimas, à Trevisan. Um livro todo trevisado.
As influências de Sidney Rocha, com a certeza de quem erra quase sempre,  estão em Joyce, Trevisan, Fante e outros que não me arrisco em falar.
Fora a garotinha do boquete de "sundown" (almoçar a 10 conto?, putz); Camila foda-e-morte de "zero- cal" (“olhou um pouco para o vazio de séculos que mora dentro dela”, não esqueço mais isso); a puta-de-história-sofrida e sua bolsa de "matriuska", o conto que batiza o bicho; a curra de "clinch"; aquela coisa que passa de marido escroto pra mulher lascada de "feedback"; a menopausa de agora de "pause" (hehehe); Lucinha gordota leite de rosas pra grudar OB de Carefree; as tragédias familiares de "nuvem"; a reza profana de : (isso mesmo, o sinal é o título); a confusão de relacionamento de "déjà vu"; a estória mais engraçada do livro em "wwwoman", a mais fofota em "googlemap"; a surreal-real estória de um móvel em "egg"; e a sanguinolência de "flash". Ufa.
Sei lá, não dá pra explicar muito. Só lendo. É inusitado, original, ótimo. Não me espantarei se vir esse livro ganhando tudo o que é prêmio por aí. Lê-lo é uma experiência única.
Ainda bem que sim, não é todo dia que dou 28 paus em um livro.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Discurso sobre a pequenez do ser humano

por Thiago Corrêa
Thiagocorrea.pe@diarioassociados.com.br
para o Diario de Pernambuco

Estampada quase todos os dias nas manchetes de jornais, a tragédia social do país também tem feito rodar as prensas do mercado editorial.Cenas de violência, descrições detalhadas de ambientes miseráveis e caracterizações de personagens sem perspectiva, enfrentando situações limite, são tão explícitas na literatura nacional quanto os problemas encontrados nas esquinas das nossas metrópoles. Um novo episódio desse enredo se inaugura com o livro de contos Matiuska, de Sidney Rocha, que sai em edição de capa dura pala Iluminuras e será lançado às 19h30 de hoje, na Livraria Cultura.

Embora não faça tanto alarde ou evidencie essa urgência pela denúncia social, o livro desperta uma sensação tão pertubadora quanto a leitura do conto Feliz ano novo,de Rubem Fonseca. Ao contrário de Fonseca, que entra de sola no rosto do leitor, Rocha prefere nos atormentar com um sussurro de velho no ouvido de uma criança.

A angústia desse escritor cearense – que hoje vive em Recife, São Paulo e Brasília – vai se revelando pouco a pouco, em pílulas, na medida em que os leitores vão descobrindo a pequenez do ser humano. Tudo acontece como numa brincadeira com as bonecas russas matriuskas. Somos envolvidos pela escrita engenhosa do autor enquanto vamos encontrando nossos semelhantes, cada vez menores, dentro das entranhas em forma de palavras.

Nos 18 contos de Matriuska, gestos de carinho se revelam lâminas, pó de vidro que engolimos e nos fazem sangrar por dentro. O dilaceramento vem disfarçado na forma da ingenuidade embutida na história de uma jovem do interior, em busca da família na cidade; no sonho de uma funcionária de hotel querendo conhecer o mundo; na devoção a Deus e nas lembranças de uma relação amorosa. É apenas um detalhe, causa, conseqüência, desfecho. O que mais vale na prosa de Rocha não é o que vai acontecer, mas como cada fato ocorre.

Matriuska é um livro de pequenos contos interligados pelo rebuscamento das raízes no mal da natureza humana. São histórias construídas como relatos despretenciosos, jogados como conversas de bar. Narrados em primeira pessoa, os contos ganham um tom confessional que permite a aproximação do leitor e resulta em grafismos para desvirtuar a linguagem. Nem o uso de termos da cultura de massa consegue pasteurizar a narrativa de Rocha, que se torna ainda mais deslocada quando anunciada por títulos como sundown, carefree e twitter.

O idioma também se transforma com o frescor da oralidade do autor, que lhe permite a junção de palavras como vocábulos e o descaso com as solenidades gramaticais, nas referências em maiúsculo a nome próprios e após pontos finais. Uma característica que nos faz lembrar Marcelino Freire, que assina o prefácio e também compactua com o interesse pela tragédia e com a lapidação de personagens brutos em rimas.

Entrevista // Sidney Rocha

domingo, 20 de setembro de 2009

Tende piedade das matriuskas

ENTREVISTA » SIDNEY ROCHA

por Marcelo Pereira
marcelop@jc.com.br
para o Jornal do Commercio

Com os 11.068 caracteres que formam as 1.929 palavras desta entrevista ao JC, o escritor cearense radicado no Recife Sidney Rocha faria alguns contos de Matriuska (editora Iluminuras, 96 páginas, R$ 35), que lança amanhã, às 19 horas, na Livraria Cultura do Paço Alfândega. Se é explicativo na entrevista, no conjunto de 18 textos que compõem a coletânea, prefere realizar uma operação de subtração a fórceps. As narrativas dão vozes à mulher. São atemporais, mas não etéreas. A dor, o sofrimento, a violência sexual, os impasses na busca de viver a felicidade possível e o prazer marcam o corpo e a alma de suas matriuskas: licinha, ana esther, zulmira, jane, guadalupe, além de outras, anônimas, identificadas apenas em sua condição social ou familiar. Suas histórias vão se revelando e se desdobrando, umas nas outras, como nas bonecas russas que dão nome ao livro.

JC – Por que as mulheres são tão desesperançadas ou sofrem tanto na pele?

SIDNEY ROCHA – “Deixai aqui toda esperança, (vós que sais)”. A inscrição poderia estar escrita na placenta de cada mulher. Porque é da humanidade que estamos falando, sempre. O “recorte” de Matriuska é só parte dessa história de amor. Porque toda história finda por ser uma história de amor. Eros, Psiqué e Tânatos o tempo inteiro. O sofrimento advém disso: todos querem prazer, poucos podem compreender o quanto, e todos são vencidos. Estas são as peles da matriuska.

JC – As mulheres são, quase sempre, vítimas. Por que elas têm receio de tomar as rédeas da ação?

SIDNEY ROCHA – Pelo contrário: as mulheres têm sempre as rédeas das situações. O cordão umbilical já é uma rédea, um cabresto de carne. Uma das minhas personagens toma a direção logo cedo, ela não sabe pra que lado é a praia, por exemplo, mas sabe por onde começar. A outra, no conto Googlemap, não conhece o mundo, mas inventa cada cidade do mundo, de carona no que lhe contam. Daí inventa também o dono da história. Um mundo todo feito de oitiva. Matriuska é principalmente a anti-vitimização feminina. Só os homens se iludem de que elas são vítimas, elas sempre sabem que são os algozes, ou mais do que esse simples maniqueísmo de carrascos e vítimas. Carrascos de si mesmo, como disse Baudelaire.

JC – Podem estar nas rédeas, mas não conseguem fugir da fatalidade ou encontrar a felicidade, não é?

SIDNEY ROCHA – Ninguém mesmo pode. Por isso o desapego do romantismo.

JC – Com Matriuska você passa a integrar um time de escritores pernambucanos – ou radicados em Pernambuco – que são cruéis com os personagens – Marcelino Freire e Raimundo Carrero, principalmente, e Ronaldo Correia de Brito. A realidade é tão aterradora assim?

SIDNEY ROCHA – A realidade é que não me preocupo com a realidade. No mundo tão virtual quanto o nosso é impressionante como as pessoas confundem realidade com pesadelo. Como disse Eliot, a humanidade não suporta tanta realidade. Escrevo mais sobre os pesadelos (a palavra em inglês, nightmare, por coincidência com o que estamos conversando, pode ser traduzida por “égua da noite”, portanto, mais uma vez, a fêmea e as rédeas). O ser humano é que é aterrador, o desespero humano é que é fascinante.

JC – Sua escrita reflete a banalização da violência dos dias de hoje? Não há mais espaço para o romantismo?

SIDNEY ROCHA – Acho que sim, que reflete a esterilização que vivemos para a violência. Mas a minha literatura não se quer a serviço de denunciar coisa alguma. Não posso acreditar que a minha literatura possa funcionar melhor que a imprensa para isso. Ou que possa também contribuir mais negativamente do que a imprensa para isso. Isso seria um romantismo. Para este tipo de romantismo, não pode haver espaço mesmo.

JC – Seus títulos relacionam-se com o universo de consumo feminino, mas há pouco de vaidade em suas mulheres. Essa é a ironia de Matriuska? Os produtos ou nomes se referem às vezes a seu oposto ou são sua negação?

SIDNEY ROCHA – Sem dúvida que sim. Dia desses eu vi numa pesquisa quantos milhões de dólares circulam no mundo dos cosméticos. Fiquei pensando naquilo. Na promessa da beleza, do prazer, e, no dia seguinte, a mulher no espelho, renovando a esperança desta mesma beleza e prazer. Interessou-me a ingenuidade em tudo aquilo. Então os meus contos mostram que tipo de proteção é esta. Quem protege quem, afinal, do sol? Quem absorve quem, do mundo? Quem adoça os lábios de quem, afinal? Na verdade, é a mulher dando o troco à publicidade, ao consumo, desde a primeira boneca que lhe deram até o último chip de celular que comprou.

JC – As histórias não tem época ou espaço específico. Mesmo quando há citação de determinado lugar é como referência geográfica. Seus personagens estão sempre em trânsito?

SIDNEY ROCHA – O livro foi escrito como num grande traveling. Os closes o leitor vai descobrindo. Por isso parece cinema, com planos que se abrem muito e fecham, por exemplo, numa mulher tirando objetos de uma bolsa. Assim, no livro, tudo está mesmo “no” trânsito, no transe, na transa.

JC – Nota-se a referência à Bíblia na escolha do nome de algumas personagens. Quais foram as suas principais fontes para as histórias narradas?

SIDNEY ROCHA – Estas histórias têm a força que têm não porque aconteceram em algum tempo e lugar, mitologicamente ou na realidade. Mas simplesmente porque estão acontecendo agora, em muitos lares, em muitas estradas por aí. Então as minhas fontes são sempre as possibilidades. Mas há um conto, por exemplo, que me ocorreu lendo O medo no Ocidente, do Jean Delumeau, um livro desses grossões que você nunca sabe direito porque comprou e que depois pira com ele. A Bíblia é outra fonte. Mas Machado de Assis é que é a bíblia para quem quer pregar sobre a mulher.

JC – O hotel é um dos ambientes presentes nas narrativas. Isto reflete seu permanente estado de deslocamento entre Recife, Rio, São Paulo e Brasília?

SIDNEY ROCHA – É. O hotel é o único confinamento a que me permito. Adoro hotéis. Tem um conto escrito pra uma poltrona de hotel. Ou como eu disse, para a possibilidade do mundo feminino ou da existência humana em qualquer coisa. Um amigo escritor me disse que agora anda desconfiado dos móveis na casa dele. Esse pesadelo não é mesmo fascinante? O fato de qualquer um de nós se coisificar completamente? Num hotel, as pessoas podem se coisificar com mais classe, me permito. O livro foi completamente escrito em quartos de hotéis. Até no Recife, onde moro mais, quando chegava, ia prum hotel porque era necessário manter isto. Coisa de quem escreve, essa doidice. Lembro que minha filha Annyela foi me visitar dia desses num hotel, aqui no Recife. A gente riu muito disso.

JC – Algumas histórias se entrelaçam, como em Matriuska e Googlemap, um personagem de um texto dialoga com o do outro, como é o caso da índia que é violentada.

SIDNEY ROCHA – Esta é a contribuição do romancista que sou aos contos da Matriuska. (Engraçado como você falou isso, “o caso da índia que é violentada”. Eu não tinha visto isso assim, como você, ou seja, aquilo foi tão natural para ela (que é um bicho, uma onça, no caso), que passei “batido”. Mas o enredo é um só. Ou seja, cada conto vai virando o romance que se completa na cabeça de quem lê.

JC – Qual o efeito você buscou ao usar minúsculas em quase todo o texto, com exceção do início dos diálogos.

SIDNEY ROCHA – Tem a ver com essa esterilização e essa anestesia pelo qual o mundo passa. As pessoas vão pra frente da TV almoçar e assistir ao programa policial, à novela. As pessoas chegam no motel e ligam a TV. As pessoas não leem, na verdade. Tudo é uma gestalt muito estranha em tudo. Então forcei que o leitor atentasse para cada ponto, para cada início de fala, e “pontuei” o personagem exatamente ali. Ou seja, no caminho contrário, fui provocando uma sinestesia tanto no personagem quanto no leitor.

JC – Como foi para você o exercício de estilo de ir direto no osso da narrativa, sem arrodeios?

SIDNEY ROCHA – Quis escrever indo direto ao ponto, porque não tolero o exibicionismo da maioria dos escritores. A retórica com manteiga, como na cena de O último tango de Paris. O niilismo infundado. Dia desses, ao entrevistar o Ray Bradbury, descobri que ele alugava uma máquina de escrever e, porque não tinha grana, tinha que escrever como um doido por uma hora, e com isto sustentar a família. Fiquei interessado nisso, quer dizer, se eu tiver somente uma hora, posso convencer alguém com o meu trabalho de escritor? É lógico que eu não consegui. Mas a lição ficou.

JC – Muitos escritores que têm um estilo mais fluido, ou até mesmo floreado, possuem um estilo que não é puro exibicionismo, principalmente na escola francesa, inglesa e russa. Ou mesmo aqui no Brasil.

SIDNEY ROCHA – Isso é também uma verdade.

JC – Foi difícil de se despir do estilo usado em Sofia, uma ventania para dentro?

SIDNEY ROCHA – Não. Aquele é um livro de há muito tempo. No decorrer disso, já me perdi outras tantas vezes. A gente descobre no caminho que a busca do estilo é como a busca do amigo ideal e da mulher ideal e do amor ideal. Quem tem estilo é serial killer (não que eu não seja um).

JC – O que levou você a uma escrita telegráfica, antijoyceana, ou antibarroca, se preferir?

SIDNEY ROCHA – Quem gostava muito do Joyce era Lacan. Mas a inspiração, estranhamente é em Joyce, muitas vezes. Na forma como ele trata a mitologia e o dia a dia, o banal, no mesmo patamar, e por isso o banal em Joyce é sublime. Mas preferi menos “cera” do que Lacan, e “despsicoanalisei” o texto. Quando cai a máscara do sintoma, fica só a linguagem. O barroquismo é o sintoma. A linguagem é a peçonha, e é o que um escritor deve buscar.

JC – Então para você a narrativa é mais uma expressão do interior do personagem. Não se trata de narrar um situação, um fato?

SIDNEY ROCHA – Sim, mas o fato sempre tem início na personagem. De alguma forma, ele está preso ao fato. É como na mitologia, entende? Édipo já ia matar o pai antes de matá-lo, entende?

JC – Como foi a gestação ou construção de Matriuska e quanto tempo você passou na construção do livro?

SIDNEY ROCHA – Um livro começa antes de começar e termina depois de terminar. Mas o primeiro conto, o escrevi em maio de 2008, e o último em fevereiro de 2009. Nove meses. Cesariano, todavia.

JC – Foi um livro pensado, pesquisado e anotado ou a história fluiu e você foi escrevendo a golpes de cinzel? Ou a fórceps?

SIDNEY ROCHA – Em literatura, tudo tem que ser pensado. Não é fácil parir aos 43, meu amigo. Por isso a tecnologia? A tecnologia esticando a vida, mas encurtando a história. Enquanto isso, a mesma tecnologia segrega as pessoas aos twitteres, aos seguidos e seguidores, tudo virtual, ou seja, o fim dos relacionamentos de verdade concretiza o Fim da História. É “o último homem” de que fala (o cientista político Francis) Fukuyama.

JC – Para você, numa época em que o livro enfrenta tanta concorrência do meio digital, uma edição caprichada, de capa dura em tecido, é uma estratégia para conquistar o leitor ou é um cacoete de editor?

SIDNEY ROCHA – Acho que o Samuel Leon, da Iluminuras, responde melhor esta para ti. Mas vi que funcionou. Engraçado que este livro dá uma sensação diferente às pessoas.