Para o Vacatussa
Estampada quase todos os dias nas manchetes dos jornais, a tragédia social do país também tem feito as prensas do mercado editorial rodar. Cenas de violência se tornaram tão explícitas na literatura nacional quanto os problemas encontrados nas esquinas de nossas metrópoles. Com base nesse foco de interesse, pode-se encontrar pelo menos duas vertentes literárias. De um lado autores trabalhando a violência por um viés de denúncia social, trazendo descrições detalhadas de ambientes miseráveis e caracterizações de personagens sufocados pela falta perspectiva enfrentando situações limite. Dois expoentes dessa linha são o romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, e o conto Feliz ano novo, de Rubem Fonseca.
Sem tanto alarde ou vontade de evidenciar essa urgência pela denúncia, mas trabalhando com a mesma temática, aparecem como expoentes da segunda vertente os autores Marcelino Freire e agora Sidney Rocha, que publica seu segundo livro Matriuska. A linguagem deixa de ser uma lente de aumento, revelando com sordidez os detalhes do nosso desequilíbrio social, para assumir uma forma opaca, que prende o olhar na linguagem e não no fato em si. O foco fica na oralidade do texto, no ritmo, nas rimas e maneirismos estéticos.
Mas, apesar de não entrar de sola no rosto do leitor, cria-se uma sensação de descompasso, que chega a ser tão pertubadora quanto. O texto de Sidney Rocha parece nos atormentar com um sussurro de velho indecente no ouvido de uma criança. A angústia desse escritor cearense – que hoje vive entre Recife, São Paulo e Brasília – vai se revelando pouco a pouco, em pílulas de até quatro páginas, na medida em que os leitores vão descobrindo a pequenez do ser humano. Tudo acontece como numa brincadeira com as bonecas russas matriuskas, somos envolvidos pela escrita engenhosa do autor enquanto vamos encontrando nossos semelhantes, cada vez menores, dentro das entranhas em forma de palavras.
Nos 18 contos de Matriuska, gestos de carinho se revelam lâminas, pó de vidro que engolimos e nos fazem sangrar por dentro. O dilaceramento vem disfarçado, na forma da ingenuidade embutida na história de uma jovem do interior em busca da família na cidade, no sonho de uma funcionária de hotel querendo conhecer o mundo, na devoção a Deus e nas lembranças de uma relação amorosa. É apenas um detalhe, causa, consequência, desfecho. O que mais vale na prosa de Sidney Rocha não é o que vai acontecer, mas como ele ocorre.
Matriuska é um livro de pequenos contos interligados pelo rebuscamento das raízes no mal da natureza humana. São histórias construídas como relatos despretenciosos, jogados como conversas de bar. Narrados em primeira pessoa, os contos ganham um tom confessional que permite a aproximação do leitor e resulta em grafismos para desvirtuar a linguagem. Nem o uso de termos da cultura de massa consegue pasteurizar a narrativa de Sidney Rocha, que se torna ainda mais deslocada quando anunciadas por títulos como sundown, carefree e twitter.
O mesmo efeito ocorre com a transformação do idioma pela oralidade internética do autor, permitindo-lhe a junção de palavras como vocábulos e o descaso com as solenidades gramaticais nas referências em maiúsculo a nomes próprios e após pontos. Uma carcterística que nos faz lembrar de Marcelino Freire, que assina o préfácio e também compactua com o interesse pela tragédia e a lapidação de personagens brutos em rimas.
Thiago Corrêa
lido em Set. de 2009
escrito em 19.09.2009
reescrito em 19.10.2009
: : TRECHO : :
“aí eles rasgaram o que puderam. enfiaram-se em mim, um após um, outro após outro, e foi nessa hora que detestei para sempre essas coisas do organismo, e que não entendi a reação das minhas carnes, e repudiei para sempre o meu corpo, e deicidi que com ele não viveria mais: As minhas glândulas piraram, meu amigo, entraram em curto sim, senhor, porque o que eles viram, no meio do nevoeiro, no absurdo daquilo tudo, foi o meu gozo tomando conta do recinto, uma, duas.. dez vezes, eu já disse dez vezes,” (p. 32).
: : FICHA TÉCNICA : :
Matriuska | Sidney Rocha | Iluminuras | 1a. edição, 2009 | 96 páginas
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