por João Matias de Oliveira
Especial
para o Correio das Artes
Ao adentrar a livraria Cultura do Recife
Antigo deparei com alguns títulos que não me eram estranhos. Eram títulos de
autores pernambucanos ou radicados em Pernambuco.
Um entre eles me chamou a atenção pelo
autor e pelo aspecto. Li alguma das primeiras páginas e fui arrebatado ao ventre
de um artista incomodado. Fui tragado por Jeroni Fernanflor, o herói deste
romance de Sidney Rocha, um aprendiz e mestre da própria arte, que pintou
princesas, rainhas, a alta corte e ruas de cidades por onde andou. Mais do que
tudo, Fernanflor é um retrato da existência do artista em sua mestria de
domínio e de dúvida: o que contém a arte nos liames da existência?
O romance de Sidney Rocha passeia pela
existência deste artista que, desde jovem, ousa perscrutar os caminhos de
próprio destino sem se ater aos detalhes reais, transcende os significados do
literário e do não literário. Atribui capítulos às cores, significados a lugares,
sensações a pessoas retratadas em telas e, finalmente, o romance se compõe de
ondas que, indo e vindo, demonstram um mimetismo do que seria um artista plástico
em seu processo . inspiração para a vida.
Sidney não tem pressa. Cada capítulo é de
ser degustado como quem aprecia a noite estrelada de Van Gogh. Os tons matizes,
nuance e sentidos são aguçados pela experiência do viver. E é nesta ousadia de
ritmo, alugada à benfazeja arte do contar muito em poucas palavras, que .
metáforas descrevem um destemido narrador flanante. Ora, Fernanflor escapa ao
narrador onisciente para flanar através de seu corpo, de sua vida e da sua arte.
Fosse o flaneur de Baudelaire ou o
indivíduo blasé de Georg Simmel diria
que Fernanflor reage à superexposição dos estímulos com a calma de um esteta de
si, das decisões que toma, do passado que recobra sob inspiração do momento.
O livro, por sua vez, é dividido em
capítulos ambientados em determinados lugares. Engana-se quem pensa que a
força desta geografia vem de fora. É translúcida, tragada de fora para dentro.
Não sobrevive senão às impressões líricas da imaginação de um pintor, cujo
mundo de fora não interessa. Diriam alguns que é a fórmula de um processo de individualização,
cuja tendência contemporânea mais se acerba que se acanha perante as opiniões.
Isto torna Fernanflor um retrato de época, uma época na qual o sujeito se
avoluma mediante os turbilhões do mundo. E, para todos os efeitos, o que interessa
aqui é como estas ideias se apresentam em narrativa.
Outra característica presente em Fernanflor está nos indícios históricos que
nos levam a pensar em Fernanflor como um dos filhos de um dos barões do
nordeste brasileiro. Logo no início, percebe-se que Fernanflor é o filho de um
barão endividado, mas interessado que o filho estude em Bressol, lugar onde
toma contato com a sua arte. Diante deste quadro, podemos dizer que Fernanflor
é também um retrato dos filhos de barões de engenho do nordeste brasileiro, tão
bem retratados por Gilberto Freyre quando mediante a derrocada de um
determinado sistema, os barões tiveram de investir na educação dos filhos como
uma maneira de legarem, de algum modo, um pouco do seu poderio.
Afora este breve introito histórico, folgo,
pois, em dizer que narrativamente Fernanflor
é uma experiência mais sensorial do que descritiva. Explico: diante das pressões
de uma narrativa que diga, Fernanflor
pede que sinta. Não espere deste flanêur uma teoria das coisas reais, mas das
sensações imaginadas. Se a realização desta geografia de dentro em Fernanflor se dá por um aprendiz e
mestre da arte e da pintura, o escritor habilmente tenta expor como este
artista pensa a própria existência. E ternos aqui um esforço de conseguir uma
narrativa que dê conta de um processo de estilização da própria vida, algo que
não nega o reconhecido esforço do escritor em transpor esse processo em uma
narrativa, por mais difícil que seja para leituras apressadas e demasiado
objetivas.
Este não é um romance de objetivos
preclaros e caminhos curtos. Como diz o autor, a respeito de uma personagem: “Ela
está eternamente vestida para grandes ocasiões nenhumas”. O livro de Sidney
Rocha, Fernanflor, tenta mostrar que
as nuances configuram o fio sensível da vida. O desafio de transpor a
experiência filosófica e sensorial de um artista mostra não somente como a vida
se compõe dessas matizes únicas, de grandes ocasiões nenhumas, mas de uma
experiência de leitura para além do mundo que, inaudito, se pode sentir.
João Matias de Oliveira Neto é escritor, editor e pesquisador doutorando em Sociologia. Mora em João Pessoa (PB)
*Resenha originalmente publicada no "Correio das Artes", suplemento do jornal A União.